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Os dois lados da cerca

No dia 14 de maio de 2018, em meio a uma grande festança repleta de comemorações sobre o momento “histórico” que estava ocorrendo, foi efetuada a mudança da embaixada norte-americana de Israel: de Tel Aviv (a capital de Israel, mais ao norte) para Jerusalém. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, estava radiante  e proclamou que aquele era “um dia glorioso!”. Para ele, o dia era de fato glorioso, pois aquilo significava nada menos que o reconhecimento da cidade sagrada como a verdadeira capital do Estado de Israel. Poderia existir maior prestígio, maior honra, maior justiça para o povo judeu e para o governo de Netanyahu do que o retorno para aquela mais desejada das cidades, a flor do Levante, sagrada para as três maiores religiões monoteístas do mundo, cristianismo, islamismo e judaísmo. Jerusalém tem posição de destaque nos conflitos israelo-palestinos, uma vez que Israel jamais cumpriu o Plano de Partilha da Palestina, aprovado pelas Nações Unidas em 29 de novembro de 1947, que estabeleceu a cidade como um território internacional.
A alguns quilômetros da festa, ocorria um outro tipo de comemoração. No gueto de Gaza, os palestinos se uniram e marcharam em conjunto em direção à cerca que separa Gaza do resto do mundo. Em sua quase totalidade desarmados, e, quando muito, segurando estilingues e pedras à maneira de Davi, eles se aproximaram da fronteira. Era mais um dia na longa, miserável, desgraçada e ignorada Marcha do Retorno. Esse é, de uma certa forma macabra, um ano especial. É o aniversário de setenta anos da Nakba, a “Grande Catástrofe” palestina. Desde 30 de março deste ano os palestinos estão marchando em direção à cerca, em direção à sua terra natal, da qual foram brutalmente expulsos durante os anos de 1948 e 1949.   Durante aqueles anos fatídicos, o exército Israelense, recém-formado, massacrou, arrasou e destruiu centenas de vilarejos palestinos, muitos deles centenários, milenares. O povo palestino, sem recurso, foi ignorado pelas grandes potências europeias; elas ainda mal tinham conseguido processar o seu próprio horror recém perpetrado contra o povo judeu – que agora passava a moeda adiante, vendo os palestinos da mesma maneira que os europeus os viram: como bichos, como menos que gente, como não-pessoas que estavam ocupando terra que nem lhes era de direito.
A moeda foi passada. Não se pode falar que os judeus esqueceram a lição do Holocausto, da sua própria luta, do seu infinito sofrimento – o Levante de Varsóvia em 1943 contra os nazistas não deixa de ter uma certa semelhança com as miseráveis Intifadas palestinas – até porque a aparentemente infinita fonte de legitimidade do Estado de Israel é o próprio Holocausto, como se a experiência catastrófica tivesse dado aos judeus passe livre para fazer qualquer coisa, por vezes de maneira não inteiramente dessemelhante das crueldades perpetradas pelos nazistas, com a (certamente não irrelevante) exceção das câmaras de gás.
Sofrimento não torna massacres justos. Grande é a lembrança do povo judeu do Holocausto; curta é a sua memória quando se trata da Nakba. Não mais que cinco anos separam os dois eventos.



Palestina debaixo da bota imperialista



No dia 19 de maio de 2018, Fathi Harb, um palestino de 21 anos de idade, ateou fogo a si mesmo no meio de Gaza. Ele veio a morrer de suas queimaduras. Fathi aparentemente tinha motivos para querer viver: sua esposa está gravida com um filho seu. Mas o desespero da situação de Gaza torna até mesmo boas novas em pesadelos. Mais da metade da população de Gaza está desempregada; a energia elétrica é racionada diariamente, ficando disponível somente duas a quatro horas por dia; água limpa é uma raridade, tão escassa quanto esperanças. Fathi não tinha expectativas de conseguir um emprego, de conseguir uma melhora de vida, de conseguir qualquer coisa. E, à maneira do monge budista da famosa foto que resistia a guerra do Vietnã, Fathi escolheu ser escutado por um meio dramático.
Entre 30 de maio, o início das manifestações, e 15 de maio, em torno de 10.000 palestinos foram feridos e cerca de 100 foram mortos pelo exército israelense, que utilizou rifles de longa distância e miras telescópicas. O banho de sangue aparentemente não incomodou Israel, ainda que os palestinos fossem civis e estivessem desarmados. Nenhum soldado Israelense morreu durante as manifestações.
Israel é um Estado colonizador, com uma população de religião judaica, que trata os árabes como uma peste a ser eliminada e até mesmo judeus não europeus como cidadãos de segunda categoria. Não haverá justiça no mundo enquanto o Estado de Israel existir nos moldes atuais e enquanto a terra dos palestinos não lhes for restituída. Chega da existência de um apartheid aberto, de um gueto sitiado, de um povo oprimido e esquecido. Na grande Marcha de Retorno, os milhares de palestinos que colocaram suas vidas e seus corpos em risco frente aos mais cruéis destinos deixaram a mensagem bem clara: eles não mais temem o Estado opressor.
Israel é um Estado construído de maneira brutal para assegurar que o imperialismo tenha um posto avançado na região do Oriente Médio e seus campos petrolíferos. As tropas israelenses matam e mutilam palestinos com a garantia do governo de Israel e aval das nações imperialistas do Ocidente. O mundo assistiu atônito vídeos de soldados israelenses –armados e financiados pelos contribuintes ocidentais, em especial os norte-americanos – atirando pelas costas em palestinos que fugiam. Porém, nenhuma manifestação oficial do mundo ocidental em favor dos “direitos humanos” dos palestinos, o que leva à inevitável conclusão de que as intervenções em favor dos direitos humanos. não passam de pretextos do imperialismo para controlar regiões onde tem interesses econômicos.
Mas um Estado desses não pode resistir o inevitável destino do uso de tanta violência: um dia ela corroerá por completo toda a sociedade e, quando a podridão terminar de desfazer sua legitimidade, suas fundações elas mesmas, chegará o momento de Retorno. E esse retorno será, certamente, revolucionário.

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