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João Cândido: O Almirante Negro

No início do século XX, em 1910, ocorreu a maior revolta nas Marinhas, em escala mundial. Ao menos 2.300 marinheiros lutaram por seus direitos como, por exemplo, por  melhores condições de trabalho, melhor alimentação, solução para a sobrecarga de serviço e o fim do castigo físico, mais conhecido como “chibatada”. Embora o castigo físico não fosse algo permitido “oficialmente”, ele era a maior herança da Marinha Imperial, onde tais tratamentos eram admitidos. Um ano após a abolição da escravatura, os oficiais ainda ignoravam o decreto de 1889, que estipulava regras sobre a proibição dos maus tratos. Para a Marinha Brasileira, até a Revolta da Chibata, era como se esse decreto não existisse.

O motivo desta revolta não ter sido tão conhecida é que foi um movimento articulado pela base de marinheiros, em sua grande maioria negros, que a sociedade à época desprezava, contra os oficias da Marinha que predominantemente eram de origem europeia. Além disso, o grande líder da revolta foi um negro, o marinheiro João Cândido.

Esse movimento nos ensina que para barrar a injustiça é necessário fazer uso da mesma força que o dominador usa contra o dominado. Essa é a única forma para se ter êxito na luta e reduzir a desigualdade. A revolta também mostrou a importância da organização, união e montagem de projetos sólidos para combater contra qualquer injustiça.


Contexto histórico


Naquele contexto, o Brasil possuía a terceira maior frota naval do mundo e encomendara dois novos navios “encouraçados” da Inglaterra, a maior potência naval do mundo naquele momento. Esses navios eram o que existia de mais moderno no início do século XX. Como o Brasil tinha necessidade de ter pessoas que soubessem manusear os instrumentos de navegação dos navios, foram enviados marinheiros de Minas Gerais e São Paulo para fazer treinamento na Inglaterra.

revoltadachibataNos treinos na Inglaterra, os marinheiros tiveram contato com uma cultura em que a luta por direitos humanos eram muito mais evoluída, o que era muito diferente da realidade vivida pelos brasileiros. Também tiveram contato com a social democracia, que foi um movimento muito forte dos operários ingleses e muito consistente na Marinha Mercante Inglesa. Além destes movimentos ingleses, no início do século XX, houve o caso do Encouraçado Potemkin, que ocorreu na Rússia, em 1905. Tratou-se de um motim onde marinheiros reivindicavam respeito aos direitos humanos, incluindo o fim de castigos físicos. Este acontecimento também mostra fortes indícios de perda do poder do Czar, sendo um movimento que foi um dos propulsores da Revolução Russa.

Em 1906, os marinheiros brasileiros chegaram de seus aprendizados na Inglaterra e aproximadamente dois anos depois iniciam o planejamento da Revolta. Nesse momento, criaram comitês e também foram montados grupos onde cada revoltoso tinha uma função. Haviam marinheiros treinados em todas as funções para que os Encouraçados funcionassem perfeitamente, mesmo sem a presença dos oficiais. Todos os marinheiros que tiveram a vivência na Inglaterra participaram da Revolta.

O contexto político vivido no Brasil no ano da Revolta, em 1910, era de eleições presidenciais. O consenso da burguesia era apoiar o candidato Rui Barbosa, que defendia a aplicação das normas de direitos humanos, o que fez com que os marinheiros simpatizassem com suas ideologias. Os militares apoiavam Marechal Hermes da Fonseca, que possuía uma linha mais tradicional em manter a mesma situação. As eleições ocorreram em março e Rui Barbosa foi derrotado, o que manteve as condições desumanas de trabalho dos marinheiros.


A Revolta da Chibata


A revolta foi planejada para o dia 27 de novembro de 1910. Porém, um marinheiro levou duas garrafas de cachaça para o navio e foi delatado por um protegido dos oficiais. O marinheiro foi penalizado com 250 chibatadas, deixando o clima do navio intragável. Dessa forma, a Revolta foi adiantada para o dia 22 de novembro de 1910, uma semana após a posse do Marechal Hermes da Fonseca.

No dia da Revolta, os marinheiros participantes do movimento assaltaram os paióis, tomaram as armas e retiraram os oficiais dos navios. Os oficiais que resistiram foram mortos. Alguns marinheiros revoltosos também perderam a vida.

A Revolta venceu inicialmente, tomou o Encouraçado de Minas Gerais e apontou as armas do navio em direção ao Palácio do Catete, onde havia uma festa do então presidente recém empossado. Em sequência, os revoltosos tomaram o navio São Paulo e apontaram seus canhões contra o Senado Federal, gerando um grande susto à elite nacional que era frequentadora daqueles espaços. Posteriormente, os navios da Bahia e Deodoro também ficaram sob a posse dos marinheiros. Durante a revolta, foi mantida uma grande disciplina nos navios como, por exemplo, os cofres e adegas eram guardados por sentinelas, demonstrando que o foco do movimento era o fim dos maus tratos e não a desordem.

O governo brasileiro, com a intensão de intimidar os marinheiros, enviou um ofício dizendo que o governo atacaria o navio de Minas Gerais. João Cândido, o principal líder do movimento, não respondeu ao comunicado e saiu com os navios ao mar aberto. De lá, passou um radiograma para os governantes que trazia a informação que o navio estava a trinta milhas da costa carioca, esperando o ataque do governo, que nunca veio. Ele comandava os navegantes a retornar para a Baia de Guanabara para abastecer diariamente. Esse procedimento ocorreu por volta de quatro vezes, durante os cinco dias da Revolta, sem maiores dificuldades ou ataques frontais do governo.

Isso porque os representantes do governo brasileiro, após perceberem que não tinham como medir forças com os quatros Encouraçados, tiveram que abrir negociações. Aparentemente, a Revolta havia vencido e os marinheiros participantes seriam anistiados, um dos termos de suas reivindicações. Logo após a retomada dos oficiais aos navios, iniciou-se a traição do acordo feito entre os revoltosos e o governo. Todos que participaram da Revolta foram presos e afastados da marinha, com o intuito de não deixar ninguém embarcado com a memória da vitória dos marinheiros.


A lição: lutar e não fazer acordos com a classe dominante


Um mês depois da Revolta, ocorreu um segundo movimento, porém mal organizado e com o conhecimento dos oficiais. Os marinheiros saíram derrotados, o que serviu como “gatilho” para o governo iniciar uma repressão violenta, tanto contra os participantes do segundo movimento, quanto aos militantes da Revolta da Chibata. Os marinheiros foram fuzilados, torturados e expulsos da marinha.

joaocandidoEmbora João Cândido tenha tentado se afastar deste segundo movimento, ele foi envolvido e preso juntamente com dezessete companheiros. Os revoltosos foram aprisionados em um buraco úmido onde era jogado cal. Após a fermentação, 16 marinheiros foram mortos, sobrando apenas dois vivos, dentre eles o Almirante Negro. Como Cândido era o principal símbolo da Revolta da Chibata e não havia morrido com a tortura, ele foi internado em um hospício com o intuito de desqualificá-lo. Porém, o diretor do manicômio, ao perceber que ele estava em plena consciência, o liberou do hospício. No julgamento da segunda revolta, o promotor não encontrou nenhum indício de participação de João Cândido, mas mesmo assim ele foi expulso da Marinha. Alguns Marinheiros da segunda revolta foram enviados ao norte do País para serem vendidos aos seringueiros. Vários foram fuzilados ou jogados com vida no mar.

Após o resultado da segunda revolta e suas punições, os revoltosos foram aparentemente derrotados. João Cândido, o líder negro da revolta, foi torturado, preso, e sofreu várias tentativas de assassinato. Após absolvido pela justiça, ele passou a ter uma vida de perseguições e teve o nome sonegado nos registros da marinha, como se naquela instituição ele não houvesse existido. Porém, ao perceber que a forma de tratamento dos marinheiros poderiam gerar outras revoltas, as chibatadas foram abolidas e houve melhora na qualidade de vida e condições de trabalho dos marinheiros que viriam após o movimento.

Assim funciona o Estado burguês e seu órgão maior de repressão, as Forças Armadas. Perseguem aqueles que lutam contra as injustiças, descumprem acordos e tomam medidas que não realizam mudanças estruturais, mas possibilitam a contenção de revoltas. Foi assim com os marinheiros negros no início do século passado e o é agora com os negros marginalizados pela sociedade, que sofrem com o genocídio movido pelo Estado e que só por meio da luta é que conseguem algumas pequenas vitórias, como a Lei de Cotas. A questão negra e proletária no Brasil e só poderá ser resolvida fora dos parâmetros do sistema capitalista, em uma revolução rumo ao socialismo.


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