• Entrar
logo

A criminalização da cultura afro é uma chaga do sistema de escravidão

O Jornal Gazeta Operária entrevistou a advogada e integrante do Observatório da Violência nos Bailes Funk de Belo Horizonte, Maíra Neiva, sobre a tentativa de criminalização do funk.

Jornal Gazeta Operária (JGO): Existe uma proposta no Senado para criminalizar o funk e proibir os bailes. Como surgiu e no que consiste esse projeto
?
Maíra Neiva: Há algumas semanas o tal projeto foi rejeitado e arquivado na Comissão de Direito Humanos e Legislação Participativa, devido à sua flagrante inconstitucionalidade (violação do direito à cultura e à livre manifestação de pensamento). O projeto foi de iniciativa popular e obteve um pouco mais das 20 mil assinaturas mínimas exigidas.


JGO: Na sua opinião, ao que se dá essa campanha contra o funk?
Maíra Neiva:
A criminalização da cultura afro é uma chaga do sistema de escravidão. Desde o período colonial, a cultura afro brasileira sofre repressão estatal. A capoeira e o samba já foram considerados crimes. A repressão ao rap, hip-hop, black soul antecederam à repressão ao funk, que já dura 25 anos, ou seja, desde o seu nascimento. Em países que exploraram a mão de obra escrava africana, como Estados Unidos e Brasil, após a abolição, houve perseguição à cultura afro que, tradicionalmente, além de fortalecer a unidade identitária negra, também era – e ainda o é – instrumento de resistência.


JGO: Uma das alegações desse projeto é que o funk não seria cultura. Como surgiu o funk e qual a sua relação com a escravidão?
Maíra Neiva
: Só quem não entende o que é cultura afirma tal absurdo. Cultura é aquilo que é construído e compartilhado, em forma de símbolos, por sociedades humanas. O funk possui estreita relação com a cultura africana “tradicional” e com a cultura afro brasileira. A musicalidade como instrumento de transmissão de ensinamentos entre gerações é uma forte característica dos povos do tronco linguístico Banto – traficado para o Brasil no período colonial para o trabalho em minas. No sistema escravocrata norte-americano e brasileiro, os povos Bantos mantiveram tal tradição e utilizaram a musicalidade como forma de resistência. Ao cantarem para marcar o tempo de trabalho – algo que já ocorria na África e que ainda se preserva no Brasil e que se pode observar entre as lavadeiras do Vale do Jequitinhonha ou em mutirões para construções de casas nas periferias, por exemplo – exaltavam a África e/ou planejavam planos de fuga. Tal característica se observa até hoje no forte discurso político do Rap ou do Funk Consciente. Em termos musicais, o funk brasileiro evoluiu da mescla entre o black soul norte-americano e o Miami Bass dos latinos que viviam nos EUA, no fim dos anos 1970. Já no início da década dos anos 1990, o funk brasileiro já possuía sua forte identidade própria.


JGO: Qual a relação desse projeto com a criminalização dos movimentos sociais?
Maíra Neiva:
Vivemos um triste período conservador, no qual a cultura – que sempre foi um dos campos de maior resistência a qualquer retrocesso – é cotidianamente atacada. Qualquer expressão cultural contestadora da realidade vem sofrendo repressão, como pudemos observar nas últimas semanas com a proibição e ataques às exposições artísticas com temática de gênero. O funk incomoda porque ele tem alto conteúdo contestatório da realidade e dos valores sociais ocidentais. É uma expressão cultural de resistência da juventude negra periférica urbana e como tal incomoda as elites brasileiras.


JGO: Outro argumento dos que são contra o funk seria o suposto fato de o gênero fazer apologia ao crime e/ou uso de drogas. Como você vê essa questão? Qual a relação desse projeto com a liberdade de expressão?
Maíra Neiva:
Primeiro é necessário pontuar que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no caso Planet Hemp, que a menção ao uso de entorpecentes não é apologia ao crime ou ao uso e sim liberdade de expressão. Existem muitas vertentes do funk. Mas nenhuma delas é citada. Apenas a vertente “Proibidão” é lembrada quando se pauta o assunto. O funk descreve o dia-a-dia cotidiano das favelas. E nós sabemos que esse cotidiano é violento. Quando o Estado falha na promoção de direitos básicos, o tráfico ocupa tal lugar e isso também acontece quando o tema é cultura. Sem incentivo à realização de eventos culturais nas favelas, por parte do Estado, cria-se um vácuo que pode ser ocupado pelo tráfico de drogas. Daí a importância de discutirmos o funk também em termos de políticas públicas, de modo que o Estado esteja presente e promova o direito à cultura, lazer, dando vozes aos sujeitos periféricos.

JGO: Você participa de um movimento chamado "Observatório da Violência nos Bailes Funk de Belo Horizonte". Como surgiu esse movimento?
Maíra Neiva: O Observatório do Funk é um coletivo independente de advogados/as populares, jornalistas midiativistas e produtores culturais do Aglomerado da Serra, o maior conjunto de Favelas de Minas Gerais e o segundo maior do Brasil – atrás, apenas, da Rocinha no Rio de Janeiro. No dia 09 de julho de 2017, em um dos bailes funks mais famosos da Serra, o Baile da Binário, um adolescente de apenas 14 anos foi assassinado pela PM. A PM justificou sua ação violenta alegando que se tratava de uma briga de traficantes. A imprensa reproduziu essa narrativa discriminatória ao noticiar “homem é morto em briga de tráfico na Serra.” A partir desse dia, os moradores da Comunidade passaram a sentir medo e deixaram de frequentar o Baile. Percebemos então que era necessário criar um coletivo para atuar em algumas frentes: 1) outra narrativa jornalística para combater a mídia tradicional; 2) ações de denúncia de abuso de Poder da PM nas periferias; 3) envolvimento do Parlamento Municipal e da Secretaria de Cultura com a temática; 4) debates periódicos sobre a cultura periférica. A partir de então, passamos a atuar de modo a tentar promover a efetivação de direitos básicos que estavam sendo violados. Não só o direito à cultura, lazer e liberdade de expressão, mas também o direito ao trabalho e renda, já que muitas famílias dependem economicamente de tais eventos.


JGO: Teça suas considerações finais.
Maíra Neiva:
É importante notar que, apesar do arquivamento do Projeto de Lei que pretendia criminalizar o funk, a dramática situação dos artistas, produtores culturais e frequentadores de bailes periféricos ainda persiste. O Direito Administrativo tem sido utilizado para criminalizar os eventos culturais nas periferias. As legislações Municipais exigem estruturas padronizadas para eventos no asfalto para liberação de alvarás nas favelas. No entanto, a lógica urbanística periférica é totalmente diferente, o que torna quase inviável a realização de eventos culturais nas favelas. Nosso padrão de legislação é eurocêntrico, idealizado segundo realidades urbanísticas inexistentes nas favelas. E a partir da negação da concessão de alvarás, a Polícia Militar se legitima para invadir os bailes de forma bastante violenta, sem qualquer autorização judicial e com uso de munição viva. Assim sendo, pensar novas legislações, dialogar com o Poder Público se faz de extrema importância para que o funk deixe de ser criminalizado.


Topo