Publicaremos, a partir dessa edição, a entrevista feita pelo Jornal Gazeta Operária com o contabilista e consultor, Carlos Abreu, especialista em contas e dívidas públicas, para falar sobre o sistema de cobrança da dívida pública.
Jornal Gazeta Operária (JGO): Quando e como começou o seu estudo sobre a dívida pública?
Carlos Abreu: Eu comecei a lidar com esse processo da dívida há 10 anos. A minha formação é na área de controladoria, mas sou uma espécie de “fugitivo” da PUC (fazia economia, contábeis e administração), era auditor etc. Acabou que fiquei apenas com o diploma de técnico de contabilidade, mas a minha prática é em empresas na área de controle. Depois migrei um pouco para sistemas, informação, isso me deu uma visão um pouco mais abrangente das transações dentro de uma organização e acabamos por fazer uma reflexão sobre o país.
Quando a dívida pública brasileira chegou em um trilhão de reais, aos tempos do governo Lula, eu comecei a estudar esse assunto, isso há uns 10, 12 anos, e a entender os mecanismos que movem esse processo de formação de dívida pública, que na verdade é um mecanismo mundial. Estamos presos a um sistema internacional de endividamento dos governos e de aprisionamento dos povos. Ele aconteceu em várias nações do mundo, independente do porte ou das condições econômicas. É um processo mundial. Hoje, os governos do mundo inteiro, somados, devem algo em torno de U$S250 trilhões.
JGO: Como se deu esse processo com o Brasil, especificamente?
Carlos Abreu: O Brasil implantou o plano real e nesse período já estávamos num processo de acumulação de dívidas. Na verdade, a nossa dívida surgiu no tempo do Brasil Império, quando pagávamos para Portugal uma indenização que na realidade foi imposta pela Inglaterra e o pagamento dessa dívida foi com relação a abertura dos portos. Então essa é uma questão histórica, que vem se arrastando ao longo de centenas de anos. Tem uma pessoa que batalha muito nisso, chama Maria Lucia Fatorelli, ela é da Auditoria Cidadã da Dívida Pública.
Para se ter uma ideia, em grandes linhas e números, quando Itamar Franco deixou o governo, em 31 de dezembro de 1994, a dívida pública do Brasil era de R$ 153 bilhões. E essa dívida, hoje, está em R$ 3,432 trilhões. Durante o plano real, saímos do estoque de dívida de R$ 153 bilhões para R$ 3,432 trilhões, agora em outubro último. Mas não é só isso. Temos mais um trilhão de dívidas das chamadas “Operações Compromissadas”. Com a pretensão (ou intuito) de não se criar processos inflacionários, o Banco Central recolhe toda a sobra de caixa existente nos bancos e remunera à mesma taxa de mercado. Então, além dos R$ 3,400 trilhões, temos mais R$1,400 trilhão. Isso criou um sistema, denominado por Maria Lucia Fatorelli, de “sistema da dívida Pública”. Para você ter uma ideia, no último orçamento enviado para 2018, está previsto R$ 1,770 trilhão somente para a rolagem da dívida pública e pagamento de juros.
Então, quando fala que não tem dinheiro para a educação, saúde, previdência, etc., que não tem dinheiro para nada, tudo está destinado à rolagem e pagamento da dívida pública. Isso criou um mecanismo chamado de juros sobre juros. É como se tivéssemos uma dívida com uma administradora de cartões de crédito e tomássemos dinheiro emprestado em uma outra administradora de cartões de crédito para pagar os juros daquela dívida e assim sucessivamente.
Com esse processo de rolagem, nos últimos 46 meses, de 1º de janeiro de 2014 até o dia 31 de outubro de 2017, pagamos de juros R$ 1,236 trilhão e a nossa dívida subiu R$1,300 trilhão. Ou seja, estamos nos endividando para o pagamento de juros. Isso é o chamado sistema da dívida.
JGO: Qual a relação desse sistema com a reforma da previdência?
Carlos Abreu: Em uma recente entrevista, Temer disse que quem combate a previdência está fazendo terrorismo. Terrorista é o governo. A pretensão com essa reforma que vai se fazer agora, da forma como está sendo apresentada, é de uma economia de R$500 bilhões em dez anos. Se fizermos uma anualização, seria R$50 bilhões por ano. O Brasil, no último mês de outubro, pagou R$30 bilhões de juros. Ou seja, a economia que iremos fazer em um ano (com a reforma da Previdência) significa um mês e 15 dias de juros da dívida. Do dia 1º de janeiro de 2017 ao último dia 31 de outubro, decorreram-se 7.296 horas. Em todas essas horas, o Brasil pagou R$ 37 milhões de juros por hora, uma Mega Sena por hora.
Então tudo o que se fala, que se produz, planeja, inventa e mente é fruto desse processo de endividamento de nações.
JGO: Como se dá esse processo em outros países?
Carlos Abreu: Os Estados Unidos da América do Norte, no ano de 2005, devia cinco trilhões de dólares. Hoje, a dívida pública dos EUA está em U$S 20 trilhões. Aconteceu a mesma coisa com vários outros países. No caso do Equador, por exemplo, foi feita uma auditoria da dívida, Maria Lucia Fatorelli participou desse processo de auditagem, e foi definido que apenas 30% era devido e os credores aceitaram esse percentual. O Equador deu um saldo qualitativo, uma melhora substancial com a reversão daquilo que era utilizado para o pagamento de juros para o lado social. A mesma coisa aconteceu com a Grécia. O endividamento desse país é fruto desse sistema financeiro. Tanto é assim que na última crise grega, no ano passado, a Troika, como é chamada a união do FMI, o Banco Central Europeu e o Grupo de Luxemburgo, investiram na dívida grega 14 bilhões de euros, mas apenas dois bilhões ficaram na Grécia. Os outros 12 bilhões foram para pagar credores dessa mesma dívida. É um sistema de dominação mundial que se materializa através de governos corruptos, em que parte importante das riquezas dos cidadãos é confiscada. Pagamos os impostos, que são carreados para essa quitação.
No caso da Previdência, além da questão de não haver o déficit tão propagado, temos uma retirada de recursos através do mecanismo chamado DRU (Desvinculação da Receita da União), e que hoje se retira 30% de tudo o que se arrecada para ser carreado para o pagamento dos juros.
Um pequeno parêntese nessa questão da Previdência. Quando o sistema de proteção social foi criado, na Constituição de 88, que foi chamado de “modelo da seguridade social”, eram três blocos: previdência, assistência social e saúde. Foram definidas várias fontes de financiamentos para esse modelo. Fernando Henrique, aquela época, era ministro da Fazenda de Itamar Franco, em março de 1994. Foi criado um fundo, por meio da PEC nº 01, chamado Fundo Social de Emergência. Havia uma preocupação que não se teria os recursos para suprir as necessidades da seguridade social. Então foi criado esse fundo, que permitiu que de todos os impostos arrecadados àquela época fossem retirados 20% para suprir a montagem de um fundo. E começaram a tirar de outros tributos para montar esse fundo. Começou a valer em 1º de janeiro de 1995, coincidentemente quando FHC (PSDB) assumiu o governo. Ao começar esse processo, viram que a “brincadeira era boa”, mas era para ser vigente apenas por dois anos. Em 1997, mudara o nome de Fundo Social de Emergência para Fundo de Estabilização Fiscal, isso perdurou.
Quando chegou no governo do PT, esse Fundo de Estabilização mudou-se para Desvinculação das Receitas da União e esse processo carreava 20% do que se arrecadava para prover recursos para o pagamento de juros dessa dívida. Isso até maio do ano passado, quando se elevou para 30% - foi outra PEC, feita pelo governo do Temer. O que temos é um modelo onde se suga tudo o que existe de recursos com o único propósito de fazer o pagamento dos juros dessa dívida.