Com menos de 100 dias de governo, o republicano Donald Trump dá demonstrações de que ainda “correrá muita água por baixo da ponte” da geopolítica, como diz o ditado popular.
A guerra deixada por Biden, na Ucrânia, o massacre promovido por Israel contra os palestinos, na faixa de Gaza, e a guerra comercial há pouco estabelecida pelo atual governo estadunidense estão na ordem do dia. Tanto a política dos democratas quanto a dos republicanos, que, na aparência, são contraditórias, sempre estiveram numa mesma direção: salvar do declínio e manter o império estadunidense na ordem vigente. Porém, essa ordem já não se sustenta, nem internamente, nem para os países conhecidos como o “ocidente coletivo”, o grupo de países alinhados aos EUA após a Segunda Guerra.
O tarifaço anunciado em um dia e refeito no outro, deixou o mundo em polvorosa. Entre o anunciar, assinar a ordem de forma teatral e o processo de implantação revela-se como algo incerto e complexo. Especialistas, até mesmo entre apoiadores de Trump, consideram incerto o rumo dos EUA diante desta política, imposta de forma caótica a mais de 180 países espalhados pelo mundo.
Essa não é a primeira vez que um governo estadunidense tira da cartola a mesma política que Trump quer requentar para resolver a crise atual. Em 1930, logo após a quebra da bolsa de valores de 1929, que expressou a crise mundial da superprodução, os EUA adotaram uma política comercial protecionista, cujos interesses era proteger os agricultores e os industriais locais. A chamada Tarifa Smoot-Hawley, assinada pelo presidente Herbert Hoover, aumentou em até 60% as tarifas sobre as importações com a intenção de aliviar o problema da superprodução, mesmo o País estando com superavit na balança comercial. O protecionismo exacerbado do tarifaço e o ultranacionalismo de direita deste período foram instituídos, apesar das contestações dos aliados e parceiros. Esta política gerou retaliações comerciais de diversos países, agravou a crise econômica global e reduziu as exportações e importações americanas em 67% durante a Depressão, além de piorar a situação dos trabalhadores e agricultores estadunidenses. Em 1934, o governo de Franklin D. Roosevelt estabeleceu uma nova base para uma política de maior abertura comercial.
Agora, em um novo cenário de crise do capitalismo, Trump tenta instituir tal política protecionista, mesmo sem aprovação do parlamento, alegando a necessidade de proteger a economia interna do País. Para legitimar suas medidas, o republicano lança mão da retórica de sua campanha sobre tornar a América “forte e hegemônica” novamente. Isso porque a fração adepta ao seu governo defende o fortalecimento interno da economia e do mercado interno, em uma produção não globalizada. No entanto, o discurso esbarra no fato de que o setor financista, globalizado, que continuará a ganhar e acumular muito dinheiro explorando os países do Sul Global, poderá fazer o recurso ao tarifaço, com Trump, ser uma repetição da história, desta vez em forma de uma tragédia mundial ainda maior. Poderá, inclusive, ser mais danosa para a frágil ordem mundial baseada na hegemonia estadunidense. Não deve ser descartada a possibilidade de uma aceleração na consolidação da nova ordem multipolar em torno dos países reunidos no BRICS.
Assim como não foi possível, por meio do protecionismo, evitar que os EUA fossem arrastados e enfraquecidos pela depressão econômica dos anos de 1930, as medidas de Trump não apontam para a existência de uma real estratégia de tentar reverter a decadência atual do império ocidental estadunidense.
Hoje, mesmo com os norte-americanos mantendo o “status” de estarem no país detentor de um grande poder nacional em relação a sua capacidade produtiva, com grande reserva de dólares, dominador do sistema SWIFT e do setor financista, de ser um dos países mais importante em desenvolvimento científico, tecnológico e na indústria armamentista, o poder econômico ainda está muito concentrado e acima do poder político. Isso significa que o grande capital manda na política e os governos ficam à mercê dessa condição. Essa é a essência da democracia burguesa.
Os democratas, com sua política belicista, e os republicanos, com sua política tarifária, ambas expansionistas, se debatem em suas próprias contradições e seguem arrastando o mundo ao caos.
Logo após o anúncio do tarifaço trumpista, assistimos o mundo se levantar em protestos, inclusive internos, contra tais medidas. As bolsas de valores responderam com graves quedas e países aliados, velhos parceiros comerciais, mesmo os de menor influência, responderam na mesma moeda, resguardadas suas condições de enfrentamento. As respostas forçaram o governo Trump a suspender por 90 dias a cobrança das tarifas, diferenciadas entre os países que exportam para os EUA.
É de conhecimento geral que o foco da guerra comercial é a China e que foi contra ela que recaíram as tarifas mais pesadas sobre os produtos importados pelos EUA. Mesmo os produtos das indústrias americanas estabelecidas na China, que acumularam muito capital às custas de baixas tarifas e mão de obra barata, serão supertaxados.
Desde o início de fevereiro, somam-se 145% de aumento nas tarifas em relação aos produtos chineses. Em relação a outros parceiros comerciais, Trump fez um recuo e reviu as taxas “reciprocas”, dando uma trégua de três meses, de não cobrança nas variadas tarifas, para todos. Assim, o governo espera que ocorram negociações bilaterais com esses países que lhe sejam favoráveis e, ao mesmo tempo, acalme o mercado mundial e evite o aprofundamento da crise política e financeira nos próprios EUA.
O governo chinês, por sua vez, está respondendo na mesma moeda e elevou o tom. A China, no momento, é o maior exportador do mundo em matérias primas e o segundo país que mais detém títulos americanos, depois do Japão. É o maior parceiro comercial dos EUA e é para a produção estadunidense que vai hoje a maior fatia de seus investimentos.
O jogo da geopolítica está sendo jogado. É de se esperar que a principal força transformadora dessa caótica situação se encontra nas mãos da classe trabalhadora mundial, principalmente a estadunidense. A luta de classes está posta.
Foto: Donald Trump/Truth Social