Em fevereiro deste ano, a Prefeitura de São Paulo inaugurou o “Prisômetro”, um painel digital de três metros de altura instalado no centro da cidade, que exibe em tempo real estatísticas de veículos recuperados, pessoas desaparecidas e prisões realizadas pela Guarda Civil Metropolitana (GCM). A iniciativa integra o Smart Sampa, sistema de monitoramento urbano que utiliza 20 mil câmeras públicas inteligentes – com previsão de expansão para 40 mil –, equipadas com tecnologia de reconhecimento facial e detecção de movimento.
A promessa que é o sistema Smart Sampa seja capaz de identificar desde atos de vandalismo, furtos, posse de armas de fogo, placas de veículos roubados, tráfico de entorpecentes, descarte irregular de lixo, invasão a equipamentos públicos até a localização de pessoas desaparecidas e foragidas. Além das câmeras públicas, o projeto permite a integração de 20 mil câmeras privadas, ampliando a vigilância em espaços como praças, escolas, unidades de saúde, estabelecimentos comerciais, áreas de grande circulação e, também, conteúdos da mídia social relevantes para a administração pública. O contrato, firmado com o consórcio Smart City SP em 2023, tem duração de 60 meses e custo mensal de R$ 9,8 milhões.
O discurso oficial classifica essa iniciativa como uma forma de fornecer respostas à sociedade sobre transparência e eficácia das políticas de segurança da cidade, porém, desde seu lançamento, o projeto vem enfrentando intensas críticas por parte de especialistas e da sociedade civil, que apontam riscos à privacidade, ao aumento da discriminação racial e ao aprofundamento de políticas punitivistas, enquanto ignora políticas sociais de prevenção.
Para o doutor em administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Alan Fernandes, que pesquisa estratégias de policiamento adotadas pela Polícia Militar de São Paulo, o “Prisômetro” não contribui para a redução de crimes, apenas reforça uma política punitivista e de vigilância com “caráter eleitoreiro”, servindo mais como propaganda política da gestão Nunes (MDB). Trata-se de uma encenação de eficácia, alinhada ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que usa o medo da violência para legitimar a expansão do aparato repressivo. Nunes e Tarcísio utilizam as mesmas retórica e política, apostando na prisão como ferramenta para ganho de segurança pública e o abandono de quaisquer outras perspectivas em relação ao tema. Em 2023, logo nos dois primeiros meses do governo de Freitas, o número de prisões realizadas em São Paulo explodiu e impactou os presídios estaduais, onde três a cada quatro unidades estão lotadas. No entanto, a ocorrência de crimes contra a vida e contra o patrimônio permaneceu em alta.
Para Fernandes, o “prisômetro” pode até ter um impacto positivo, na medida em que as pessoas se sentem mais seguras com a realização de prisões. Mas, segundo ele, a ideia de uma cidade policiada e vigiada é apenas um paliativo, já que as prisões são a face pouco importante das políticas de segurança pública.
Um dos pontos muito questionado do programa Smart Sampa refere-se à coleta e ao compartilhamento de dados. A Prefeitura afirma que foram aprimoradas as questões jurídicas do sistema para evitar incorreções e garantir a proteção do cidadão. No entanto, embora o programa se afirme em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), as regulamentações e parâmetros existentes nessa área não se aplicam adequadamente à segurança pública, o que abre espaço para abusos e violações de direitos.
Outro ponto polêmico diz respeito ao reconhecimento facial – peça central do sistema Smart Sampa –, que pode ampliar a criminalização de populações periféricas e negras, historicamente alvo de abordagens policiais discriminatórias. A advogada de direitos digitais e coordenadora de pesquisa do Instituto de Pesquisa em Internet e Sociedade (IRIS), Fernanda Rodrigues, alerta que a tecnologia de reconhecimento facial tem o potencial de levar a falsos positivos. São frequentes os erros de reconhecimento pelo algoritmo de inteligência artificial que comanda o sistema, envolvendo, principalmente, indivíduos negros, já que esses são alvos constantes de vigilância e ações violentas por parte de forças de segurança. Dado que o sistema penal brasileiro é seletivo e racista – onde 67% da população carcerária é negra –, a automação da vigilância pode aprofundar injustiças.
Segurança fictícia x Estado Democrático de Direito
Ao integrar 20 mil câmeras privadas – de munícipes, empresas ou concessionárias – à rede pública, o Smart Sampa dissolve a fronteira entre Estado e vigilância corporativa, criando um panóptico digital onde todos são monitorados, mas ninguém controla os controladores. Não há transparência sobre: Quem acessa os dados? Como são armazenados? Qual o limite para perseguição política?
A ausência de fiscalização independente transforma o projeto em uma ameaça direta ao Estado Democrático de Direito, onde vigilância em massa substitui o devido processo legal.
O sistema Smart Sampa não representa "tecnologia a serviço do cidadão" — é a ferramenta de um Estado que prefere monitorar a garantir direitos. Enquanto a prefeitura gasta R$ 9,8 milhões por mês com câmeras, os cortes em educação, saúde e moradia mostram a verdadeira prioridade: controle, não inclusão.
Esse projeto não combate a violência; institucionaliza-a, convertendo políticas públicas em algoritmos de exclusão. Em um momento global de recuo das democracias, São Paulo exporta um modelo perigoso: o da cidade onde liberdades civis são moeda de troca para uma segurança fictícia.
A pergunta que fica é: quando a própria estrutura do Estado vira uma máquina de violação de direitos, quem vigia os vigilantes?
Foto: Reprodução/Instagram/@prefsp