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Um Convite à África

Muito do que é hoje o sistema capitalista Ocidental vem dos acontecimentos do século XIX. Foi ali que este sistema econômico se estabeleceu, e junto com ele, todo um ideário burguês. Naquele momento também o continente africano viveu o período de sua colonização, onde os países capitalistas dividiram arbitrariamente entre si as áreas do continente, sem tomar nenhum conhecimento das divisões étnicas preexistentes.

Para “justificar” a brutalidade do seu empreendimento, o mundo capitalista Ocidental falava em salvar os africanos das trevas, levar o conhecimento para aquele local esquecido pela “civilização”. Um dos grandes responsáveis para este embasamento teórico foi o filósofo alemão Friedrich Hegel, que fazia a defesa da hierarquia das civilizações e classificava as sociedades de acordo com o seu grau de acesso à razão. A áfrica ocupa o lugar da ausência total de cultura e de razão, de sentido da história, sem realizações culturais, condenada ao subdesenvolvimento e a submissão. Era como se tudo que foi produzido em África antes da colonização europeia fosse vazio de sentido, de história e de razão.

A afirmação, sem dúvidas, é absurda. Afinal foi em África que a própria humanidade surgiu e onde existiram complexas organizações políticas, como o Egito e o Império de Mali. Foram agentes do continente africano que regularam grande parte do comércio mundial na era moderna (1453-1789), que estiveram comercialmente interligados desde tempos imemoriais com o mundo mediterrâneo, onde se localizava a Europa, e também com o Oriente, acontecimento que os europeus muito demoraram a conseguir estabelecer.

O assustador é que, mais de duzentos anos após Hegel, grande parte da população do Ocidente permanece tratando o continente africano como obscuro. Quando não é assim, a África é tratada apenas como exótica, com programas confinados a TV fechada mostrando safáris e a peculiaridade das “tribos” africanas. Sobre África, impera o senso comum.

Em pesquisa realizada com alunos do 5º ano do Centro Pedagógico da UFMG, ou seja, entre os 11 e os 12 anos, a afirmação acima foi posta a prova. Foi perguntado a cada aluno a primeira palavra que lhes vinham à mente quando ouviam a palavra África. As respostas transbordam senso comum: cabelo diferente; deserto; savana; tristeza; pobreza; escravos; febre amarela; falta de água; capoeira; malária; rituais. Apenas um aluno respondeu algo que poderia ser considerado positivo, ao dizer “povo alegre”.

Ao justificar sua resposta, um dos alunos que pensou em pobreza, disse: “porque o povo lá não tem dinheiro para comprar comida e eles não têm dinheiro para comprar coisas melhores. Já vi isso na televisão, falando que até os filhos pequenos trabalham”. Outro, ao pensar em escravos, justificou “porque eu já vi muitas reportagens falando sobre os escravos africanos”.



Esta afirmação do que se conhecia sobre África ser provida do que se vê, ouve e lê nos meios de comunicação foi geral. De todo, este fato não pode ser tratado como surpresa. Segundo uma publicação do grupo de pesquisas Gallup, empresa estadunidense, 85% do que um adulto comum que vive na cidade “sabe” hoje de sua realidade política provém dos meios de comunicação em massa, da televisão principalmente.

Não se pode argumentar que estes conhecimentos rasos sobre o continente africano, veiculados nos meios de comunicação, advêm de falta de informações. Desde a década de setenta do século XX, momento de independência da maioria dos países africanos, um trabalho exponencialmente profuso sobre o continente vem sendo desenvolvido. Muitos historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas e cientistas políticos, africanos e também de outras partes do mundo, se debruçaram no estudo das mais variadas temáticas que tocam África. O grande marco deste momento é a coleção História Geral da África, que conta com oito volumes que abarcam desde a pré-história até meados do século XX, organizada pela UNESCO e que se encontra disponível online.

Pode-se argumentar, contudo, que estes conhecimentos acadêmicos não chegam à educação básica. Em relação ao Brasil, a lei 10.639, datada de 2003, tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental e médio. Porém, o que se assiste é a ausência de profissionais qualificados para trabalhar com a temática. Para se ter uma ideia, apesar da lei datar de 2003, o curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais só foi possuir a disciplina História da África em seu quadro de disciplinas obrigatórias em 2011. Desta forma, os professores de história formados pela UFMG antes desta data não possuem conhecimentos no tema para passar aos seus alunos. Isto, em conjunto com a falta de cursos de extensão que tratem sobre história da África, proporcionados pelo Estado, para os professores que já estão em exercício, faz com que o continente ainda seja acessível aos alunos apenas através dos meios de comunicação.

Isto é um grande desserviço ao continente que, através da hemorragia demográfica causada pelo translado forçado de milhões de seres humanos escravizados, constitui base da população brasileira. A busca pelas origens é parcial. É como se aquele escravizado, brutalmente transladado de África para o Brasil, tivesse nascido em meio ao Atlântico, dentro de um navio negreiro.

Perde-se assim a possibilidade de se conhecer uma África além do senso comum. Uma África forte, pujante, agente. Uma África que não seja passiva, que seja protagonista da História. Quem foi Sundjata Keita? O que foi o Império de Gana? Quem foram os Zulus? Qual a importância de África em todos os períodos históricos? Quem foram aqueles que lutaram nos processos de independência dos países africanos? Porque o Egito, um dos berços da civilização e localizado em África, só é representado midiaticamente por pessoas brancas? A África é, e sempre foi, muito mais que fome, doenças, miséria e sofrimento. A África é mais do que aquele lugar exótico, com animais selvagens e etnias peculiares. 

À Esquerda, que se preocupa com aqueles politicamente, economicamente, culturamente e socialmente marginalizados pelo sistema capitalista, o conhecimento sobre África também faz parte da luta. Grande parte do Movimento Negro brasileiro já se atentou a esta realidade, realizando pesquisas e palestras sobre a temática. É importante também que outros movimentos contrários ao sistema pensem no continente africano. Ora, não é a África, dentre todos os continentes, o mais marginalizado pelo sistema capitalista? 

* A citada pesquisa com os alunos do Centro Pedagógico da UFMG se encontra disponível em: MALACCO, F; RICCI, C. Desafios no trabalho com a (re) construção do imaginário sobre o continente africano. IN: RICCI, C; SCALDAFERRI, D; VIEIRA, M (Org.). Cadernos ensinar: saberes e fazeres da Docência. Belo Horizonte: Centro Pedagógico da UFMG, 2015. 


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