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O Níger no centro da atenção mundial

A África Ocidental encontra-se como um barril de pólvora prestes a explodir. No dia 26 de julho ocorreu um golpe de Estado no Níger, no qual a Guarda Presidencial, liderada pelo General Abdourahamane Tchiani, depôs o então presidente Mohamed Bazoum. Após um momento inicial de dúvida, todos os ramos das forças armadas declararam apoio ao novo governo, que efetivamente estabeleceu seu poder. Esse é o terceiro golpe de estado em três anos na região da África Ocidental, tendo sido precedido por Burkina Faso (2022) e Mali (2021).

A região tem sido acometida por uma série de problemas graves: secas prolongadas causadas pelo aquecimento global, terrorismo de extremistas muçulmanos resultante da invasão e destruição da Líbia pela OTAN, em 2011, um aumento do tráfico de pessoas, armas e drogas, a extração de recursos naturais valiosos sem retorno para os países e o estabelecimento de bases militares estrangeiras. Os governos "democráticos" desses países, eleitos mas, em geral, odiados pela população, se mostraram completamente incapazes de lidar com essa série de problemas. Essa incapacidade abriu espaço para que as forças armadas tomassem o protagonismo político.

O Níger possui reservas valiosas de ouro, urânio, e petróleo, descoberto mais recentemente. Apesar disso, é um dos países mais pobres do mundo, sendo que o seu Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, só é maior que do Sudão do Sul e do Chade. Isso é resultado do neocolonialismo, sobretudo Francês. 

Os recursos naturais do Níger

O Níger é atualmente o quinto maior produtor de urânio do mundo. O seu urânio é de boa qualidade, sendo o melhor da África, e a sua extração é relativamente rentável, feita pelas empresas Somaïr e Cominak, subsidiárias da Orano (antigamente chamada Arana), uma empresa pertencente ao  governo francês. Assim, o Estado Francês, indiretamente, ainda é dono majoritário de boa parte dos recursos naturais do Níger. 

Isso é um esquema duplamente lucrativo para a França. Primeiramente porque permite produzir urânio a custos subsidiados, pois, como os relatório de 2013 da Oxfam e de 2014 do jornal Reuters relataram: as empresas francesas não pagavam tarifas para a exportação do urânio para a França; não pagavam impostos sobre os recursos materiais nem sobre as ferramentas utilizadas; pagavam royalties de apenas 5.5%, um valor tão baixo que apenas a Austrália (o país com as maiores reservas de urânio do mundo) se equipara; eram protegidas por lei que se assegurava monopólio e tinham o direito a não divulgar publicamente nenhum relatório sobre a sua produção. É certeiro que pouco ou nada mudou de 2014 para cá. Para se ter uma dimensão da escalada do roubo, em 2010 a Areva produziu o equivalente de 2.3 trilhões de francos CFA, moeda corrente usada em doze países africanos, de urânio no Níger, mas repassou apenas 300 bilhões para o país.

A França é o pais que mais depende de energia nuclear do mundo. No último relatório do Ministério da Transição Energética francês, a respeito da produção de energia, consta que 75% da produção energética francesa deriva de fontes nucleares. Por mais que, de fato, a França dependa do Níger para apenas 15% do urânio que consome (uma quantia significativa, mas tecnicamente remanejável), a perda dessas fontes seriam desastrosas para a França, não somente pela quantidade significativa de capital perdido (na forma da propriedade das minas, material industrial pesado, etc.), mas também em relação aos rendimentos futuros, dado que ainda existem reservas imensas inexploradas no Níger. Além disso, a França é o maior exportador de energia elétrica da União Europeia, de modo que a falta do urânio nigerino poderá impactar a sua balança de pagamentos e tornar essa venda de eletricidade menos rentável.

Um terceiro fator coloca o Níger no centro de tendências mundiais. Após a imposição de sanções à Rússia pela União Europeia, os países europeus estão com dificuldades enormes para a aquisição de gás natural. Isso resultou na destruição da indústria alemã, que era dependente do gás natural abaixo do preço de mercado, suprido pela Rússia. Surgiu, então, o interesse no investimento em infraestrutura energética em todo o mundo para tentar compensar essa falta. O projeto do Gasoduto Transaariano, que iria da Nigéria para a Argélia, passando pelo Níger, e se conectando à malha de gasodutos europeia já existente veio ao encontro desse interesse. Estimado em 13 bilhões de dólares, esse gasoduto seria capaz de enviar 30 bilhões de metros cúbicos de gás natural para a Europa. Com a tomada de poder pelos militares, o gasoduto fica paralisado e a Europa continua em uma posição precária em relação à produção energética. Evidentemente, há um interesse econômico internacional forte no Níger, cujas riquezas e localização estratégica lhe dão um valor que não é repassado a sua população.

O desequilíbrio na região da África Ocidental

Os países da África Ocidental, acometidos pelo neocolonialismo desde as suas independências, agora sofrem um segundo problema: incursões de organizações radicais muçulmanas como o ISIS e o Boko Haram, que controlam grandes partes da região e causam muitos problemas. Desde a Guerra Civil Argelina (1991–2002) a região lida com movimentos radicais muçulmanos lutando contra forças governamentais. Mas este problema, que era mais manejável antes, se tornou intratável após a invasão da Líbia pela OTAN em 2011. Os movimentos que estavam perdendo força, como Boko Haram, subitamente receberam quantidades enormes de armamentos via os "rebeldes moderados" financiados pelos EUA na Líbia. A balança de forças na região foi completamente distorcida, de modo que grupos que antes eram combatidos pela polícia da Nigéria, um dos países mais ricos da região, por exemplo, agora precisam ser combatidos pelo exército nigeriano.

O governo deposto do Níger, com sua carestia de recursos econômicos, apesar das riquezas naturais, não conseguiu combater essas forças radicais muçulmanas com sucesso. Isso o forçou a "pedir ajuda" para a que a França e os EUA estabelecessem bases no país, o que, longe de resolver o problema, só piorou a situação e agravou as tensões neocoloniais em relação à população. De fato, o partido a qual Bazoum e seu antecessor, Mahamadou Issoufou, pertencem, o PNDS (Partido Nigerino pela Democracia e Socialismo), chegou ao poder com promessas de investir na saúde e educação, algo que rapidamente se mostrou impossível dada as imposições neocoloniais e a impossibilidade de combater radicais muçulmanos com os poucos recursos disponíveis.

Subordinado ao imperialismo ocidental, o PNDS se tornou mais um daqueles partidos representantes da burguesia nacional traidora, que vende os recursos do país a preço de banana em troca de dinheiro de corrupção e aparelhamento do Estado. Com a sua popularidade rapidamente caindo, o PNDS entrou em uma campanha de destruição da oposição, criando, para efeitos práticos, um Estado de partido único no Níger. A tentativa de golpe bem-sucedida ocorrida em julho é, na realidade, a terceira em três anos, sendo que uma ocorreu dois dias antes da posse de Bazoum e uma segunda, promovida por um movimento civil chamado M62 (em referência a 62 anos da independência, ocorrida em 1960), foi suprimida em 2022, e seu líder, Abdoulaye Seydou, preso. 

Com o agravamento dos problemas econômicos e sociais, inclusive resultantes da pandemia do Covid-19, e a inexistência de uma oposição civil, o destino do governo estava selado: seria só uma questão de tempo até um ramo militar ser capaz de tomar o poder. A Guarda Presidencial, que tinha a confiança de Bazoum e foi responsável por impedir vários golpes anteriores, finalmente trocou de lado e resolveu tomar o poder em suas rédeas.

As respostas nacionais e internacionais

O jornal burguês Economist, publicado na Inglaterra, fez uma pesquisa no Níger a respeito da popularidade do golpe. Apesar de ter sido direcionada principalmente a homens "bem-sucedidos" da capital, um grupo social que, por questão de classe, é costumeiramente mais liberal e preocupado em manter a democracia burguesa, 78% dos entrevistados relataram aprovar do governo militar e suas ações. A realidade é que o golpe é extremamente popular no Níger, uma vez que a "democracia" liberal estava completamente desacreditada. O fato do novo governo apresentar uma postura anti-imperialista renova as esperanças da população de finalmente ser capaz de se libertar desse jugo maldito que já dura centenas de anos.

Evidentemente, os países imperialistas se mostraram fortemente contrários ao golpe, juntamente com os países "democráticos" da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, CEDEAO, fortemente subordinada aos interesses imperialistas ocidentais. Logo após o golpe, o presidente da Nigéria e também da CEDEAO, Bola Tinibu, ameaçou invadir o Níger e pediu ao senado nigeriano para lhe dar permissão para iniciar a invasão, além de convocar a CEDEAO com o intuito de obter permissão para a incursão. A Nigéria é o único país da África Ocidental com um exército relativamente poderoso e bem equipado, de modo que uma invasão realizada pela CEDEAO é, para efeitos práticos, uma invasão nigeriana sob outro nome. A CEDEAO impôs sanções pesadas ao Níger, inclusive com o corte de 70% da eletricidade que o país necessita, além do fim de relações comerciais, e permitiu que uma invasão fosse realizada.

A CEDEAO é essencialmente o órgão representante da burguesia traidora dos países da África Ocidental, fio condutor do imperialismo europeu, sendo responsável por manter todos sob o jugo neocolonial, tal como a necessidade dos países francófonos de utilizarem o franco CFA  como a sua moeda, cujo valor é ditado pela França e que requer que os países que a utilizam mantenham 50% de suas reservas financeiras na França, o que impossibilita qualquer desenvolvimento interno. As elites dos países "democráticos" da África Ocidental, como Senegal, Costa do Marfim, Gana, etc., portanto, estão morrendo de medo de serem as próximas a sofrerem golpes militares e, assim, deram uma resposta imediata e violenta ao golpe no Níger.

Tinibu tem ligações fortes com os EUA, onde se formou Economia. Porém, o senado nigeriano negou seu pedido e ele se encontra em uma posição pouco favorável, com grande oposição doméstica a qualquer invasão, apesar da pressão internacional para que ela ocorra. O resultado disso é que nenhuma decisão foi tomada e os militares nigerinos conseguiram estabelecer o seu poder mais fortemente, o que dificulta ainda mais qualquer deposição via invasão.

Um segundo elemento importante é que as potências imperialistas estão em conflito umas com as outras. A França, desesperada para manter seus investimentos e a sua última base significativa na África Ocidental, apoia uma invasão imediata. Porém, os Estados Unidos quer se aproveitar do ódio local aos franceses para manter no Níger a maior base aérea da história da força aérea Estados Unidos, que custou mais de 110 milhões de dólares. O EUA estão tentando evitar a todo custo enfurecer a junta militar do Níger e parecem satisfeitos em jogar os franceses para "debaixo do ônibus", se isso garantir a permanência da sua base aérea e se impedir que o grupo Russo Wagner, muito popular no Mali e no Burkina Faso como uma força efetiva de combate contra radicais muçulmanos, entre no país.

O resultado é que o golpe se consolida e os franceses perdem seus últimos vestígios neocoloniais no Sahel. Muito provavelmente serão os chineses que, buscando sair de fontes energéticas emissoras de CO2, investirão nas minas de urânio, anteriormente francesas, criando uma situação muito mais benéfica para os nigerinos, uma vez que a China propõe novos tipos de acordos multilaterais com os países africanos.


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