Em meio à devastação causada pela Covid-19 no Brasil e no mundo, com uma prerrogativa do que não se pode evitar, o inevitável isolamento social, a percepção é de que a saúde mental das pessoas vem piorando.
Esse tema é estrutural em ser discutido seriamente pelas entidades sindicais e pelas organizações inseridas no mundo do trabalho.
Uma das principais consequências da pandemia do Covid-19 (e suas cepas) é que ela trouxe profundos e inimagináveis impactos à rotina das organizações, que se reordenaram em suas estratégias para reduzir custos, mas mantendo os ganhos e lucros, almejando a sustentabilidade dos seus negócios. Nessa dança das cadeiras, a estratégia assumida foi colocar nas mãos dos trabalhadores os custos pela crise sanitária, repassando aos mesmos as responsabilidades em se cumprir organogramas, elevarem metas dentro desse pandemônio instalado. Isso quando a saída não foi simplesmente os cortes nos salários, redução de direitos e até mesmo as demissões. O Capital não negocia os lucros, ele repassa os custos a quem lhe vende sua força de trabalho.
Em tempos de pandemia, o trabalho na modalidade home office, em caráter provisório, foi a recomendação mundial, indicada inclusive por órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS), como forma de assegurar que as pessoas ficassem em casa, mantendo os protocolos de segurança, e evitassem a propagação do vírus. Para a maioria da classe operária, especialmente aqueles que estão na base da pirâmide de exploração capitalista, a possibilidade de manter o distanciamento social não passou de “sonho”. O resultado dessa falta de política pública e sanitária são as mortes de quase 600 mil brasileiros, número que coloca o Brasil como o segundo país no mundo com mais óbitos em decorrência da Covid-19. No caso dos setores que conseguiram trabalhar em home office, o patronato logo transformou essa modalidade em mais uma forma de aumento da exploração e de sofrimento emocional.
Sem dúvidas o cenário caótico e de incerteza decorrente da pandemia trouxe outras formas e organização no mundo do trabalho, que para além do caráter provisório do trabalho remoto, colocou uma nova ordem nas relações interpessoais, sem uma preparação tanto da estrutura social, como de uma “invasão” dos lares privados, sem uma adequada separação da vida doméstica e da vida profissional. Esses novos ditames laborais impostos pelo capital têm contribuído e vêm avançando nos limites da ordem do privado, sem filtros de privacidade e sem delimitações.
Foge do arbítrio do trabalhador o saber manejar qual tempo laboral deve ser incorporado ao seu espaço e tempo privado. Os processos laborais e de suas atividades profissionais, submetem-no ou impõem uma nova reestruturação a sua esfera do privado, a um novo normal dentro das legislações e observações legais do até então estabelecido.
Reflexos na saúde mental
Esses desafios, cotidianamente colocados trazem o stress da escolha (ou da não escolha) pelo referencial do particular e familiar. Entre o pêndulo da escala de valores a ser estabelecida da vida privada e da vida pública laboral, deflagrando e gerando conflitos, aprofundam-se os processos internos em se readaptar a mais recente postura recomendada no coaching esperado pelas organizações, infligindo uma outra lógica na preconização de ordem laboral. Entre os dois lados do trapézio, entre o meu privado e o espaço de produção, entre o espaço de vivência íntima que é atravessado pelos valores organizacionais a serem implementados em suas rotinas domésticas, entre ser coerente diante dos extremos, de acatar os novos valores estabelecidos, que lhe garante a sobrevivência, ou abster-se de seus valores existenciais que lhe conferia uma identidade, é nessa dicotomia que se embrincam as causas da deterioração da saúde mental nesse contexto.
Os impactos na saúde mental, econômica e de improviso ergonômico acarretam sofrimento emocional e identitário para os trabalhadores arrolados nesse novo normal. É difícil traçar essa linha tênue entre o ônus e o bônus, nesse momento de sobrevivência de necessidades básicas.
Em primeiro momento, podemos achar que o trabalho em home office é seguro e confortável, mas precisamos reconsiderar que outras questões se pautam como importantes, de forma que não acarretem um desgaste mental, ou seja, que não se tornem eixos causais de deterioração de nossa saúde mental.
Através de alguns dados de estudos em relação ao tema, que foram e estão sendo desenvolvidos empiricamente por organismos e entidades que pesquisam essa área da saúde, observou-se que o problema dessa nova modalidade laboral vem impactando a saúde mental das mulheres com mais intensidade do que os homens. Imprimindo um sofrimento psíquico, que já era demonstrado em literatura médica, as mulheres sofrem maiores impactos pelas condições sociais onde se inserem, inclusive pelo fato de a maioria delas ter tripla jornada em seus afazeres domésticos, como seres culturalmente encarregadas dos cuidados sanitários e da maternagem da prole.
Com a pandemia, essas situações de gênero e desigualdade se acirraram. Um estudo realizado por uma plataforma para trabalhadores freelancers, mostra que o impacto do home office na saúde mental dos profissionais pode ter sido negativo. Entrevistando 2.810 trabalhadores da América do Sul, Norte, Central e Europa, a empresa chegou a preocupante conclusão sobre a saúde mental no home office: 43,7% dos participantes declararam que trabalhar em casa resultou em impactos psicológicos” (Daniel Schwebel, country manager da Workana no Brasil). Já uma pesquisa conduzida por cientistas do Instituto de Psiquiatria (IPq), do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), também corrobora esse achado (Fonte: Ivanir Ferreira / Jornal da USP). Os serviços de suporte psicológico, sessões de terapia e outros atendimentos à saúde mental se intensificaram e estão aumentando a demanda em serem procurados.
Em dados levantados por estudos brasileiros mostram que as mulheres respondem por 40,5% dos sintomas de depressão, 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse (fonte: Workana). Estudos em caráter preliminares e iniciando pesquisas sobre o impacto na saúde organizacional e mental no âmbito dos trabalhos remotos, esses resultados apontam para uma urgência em adotar e implementar práticas em atenção à saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras, enquanto saúde ocupacional.
É pauta prioritária
As empresas precisam se reinventar enquanto responsáveis pela saúde dos trabalhadores. Criar novas abordagens, adotando novas estratégias de promover e assistir corpo funcional. É de urgência a formulação de outras politicas de saúde, que devem ser inseridas nas Normas Regulamentadoras. Essa é uma das principais pautas a serem requisitadas nos acordos coletivos e Exames Ocupacionais. É urgente pensar nas construções de serviços de atenção à saúde mental do trabalhador, que transformem os protocolos de intervenções e prevenções na saúde psíquica, garantindo normas regulamentadoras específicas na área da Saúde do Trabalhador
Essas normas devem ser pensadas como precursoras em suporte e monitoramento do escopo organizacional, aglutinando informações e dados que identifiquem as relações sociais e o mundo do trabalho, respaldando as relações humanizadas para com os trabalhadores, que na atualidade são denominados de “colaboradores”.
Marcia Omaia Rodrigues
Psicóloga, militante de movimentos sociais e diretora do SINDADOS/MG.
Foto: Psi.