Esta semana está se consumando mais um passo na direção da privatização do SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados), a maior empresa pública de tecnologia da informação do mundo, segundo a própria Empresa. Trata-se do esvaziamento da área de Educação do SERPRO, lotada na Diretoria de “Desenvolvimento Humano”. Profissionais da escola virtual (www.moodle.ead.serpro.br), com atuação corporativa, serão deslocados para a Diretoria de Desenvolvimento (desenvolvimento de soluções em software - https://www.transparencia.serpro.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem) para integrar as equipes, até onde se sabe, de construção de portais.
A despeito da real importância do desenvolvimento Web, a desvalorização da educação no contexto corporativo pode acarretar dano potencial na evolução institucional, o que reforça a hipótese de ser mais uma ação na direção da privatização.
Como regra, os processos de privatizações das estatais ocorrem sem debate com a população, a despeito do esforço de sindicatos, sociedades científicas e alguns poucos mandatos parlamentares que se debruçam sobre o tema. O fato é que as consultas públicas foram, há muito, descartadas como método de governança aplicável em um governo que negocia, à revelia, a soberania do País com a maioria parlamentar oportunista e flutuante do Centrão.
O desenvolvimento da “educação corporativa” no Serpro iniciou-se há pouco menos de 20 anos. Deu-se a partir de entendimentos de funcionários da Empresa que compartilhavam princípios das políticas inscritas em uma proposta denominada “Informática Pública”. A ideia foi dar sequência a algumas experiências que haviam sido desenvolvidas em empresas públicas de informática, que se organizavam em dois fóruns principais: ABEP (abep-tic.org.br) e a extinta ASBEMI (Associação Brasileira das Entidades Municipais de Informática). Buscava-se a criação de uma estrutura de apoio interinstitucional, e da definição uma política educacional que visasse a transição de um modelo baseado em tecnologias proprietárias, para outro, de tecnologias abertas, apoiadas na Internet.
Embora existisse um fundamento que parecia óbvio, e cada vez mais relevante, de soberania tecnológica, os argumentos internos empregados para convencimento da corporação, em estágio política e tecnicamente atrasado, porquanto formada em treinamentos de fornecedores, lançou-se mão das teorias da área de negócio e administração para o estabelecimento da comunicação e do entendimento sobre a nova orientação que emanava da sociedade de tecnologistas.
Foram exploradas as contradições das abordagens de modernização inscritas nas teorias, demarcando as convergências conceituais, para tentar encontrar alternativas mais independentes e informadas, na lida com o problema da sustentação da organização a longo prazo, em contextos de mudanças aceleradas, como é típico na área de tecnologia. De um lado o modelo de desenvolvimento institucional dominante naquela a época, de certa forma, ainda hoje, da “Reengenharia de Processos” foi confrontado com a proposta da learning organization, apresentada por Peter Senge, e publicada no Brasil com o título de “A quinta disciplina”.
A primeira abordagem, a da “reengenharia”, foi sugerida por Thomas H. Davenport, e era fortemente apoiada nos preceitos da “qualidade total”, de inspiração positivista, cuja marca é tratar o sistema sociotécnico de maneira mecanicista, no qual não caberiam práticas de autogestão nos processos de mudança. Na proposta em Senge, as organizações aprendem apenas por meio de “indivíduos que aprendem”, mas a aprendizagem individual não garantiria a aprendizagem organizacional, o que implicaria na necessidade de algum mecanismo de reconhecimento dos conhecimentos em circulação. Assim, mais do que “uma coisa da moda”, veio a ideia de proporcionar um ambiente corporativo de aprendizado.
Foi criada, então, a Universidade Corporativa Serpro, com ações fortemente apoiadas na educação à distância. No caso em questão, enfraquecer a educação para fortalecer o desenvolvimento Web significa enfraquecer ambas, porque a evolução do conhecimento, relativo à chamada “experiência de usuário”, está longe de alcançar a maturidade. Lembrando que Experiência do Usuário é uma área da computação que estuda os atributos que determinam em que medida é satisfatória a navegação em um sítio de internet, cujos conhecimentos são habitualmente empregados na construção de portais e sítios de Internet. É evidente a importância de poder contar com uma estrutura de suporte educacional para apoiar a evolução, invés de absorver tal estrutura, como se, em desvio de finalidade, esta absorção fosse capaz de resolver os desafios específicos de produtividade. Além do que, todas as demais áreas de conhecimento que compõem o espectro de saberes relacionados ao governo eletrônico seriam negligenciadas.
O que se vê, desde a consumação do golpe parlamentar de 2016, para além das questões de natureza legal e normativa, culminando na administração do atual governo, é uma privatização subliminar nas medidas ditas de racionalização, que nada mais são do que formas de desarticulação dos meios de mobilização do corpo funcional, em especial as que dizem respeito à liberdade intelectual para potencializar o trabalho em equipe e considerando a diversidade social, para acomodar o modelo de gestão dos financistas, modulado pelo critério da maximização da relação de “faturamento por empregado”.
Ao invés da “transformação digital” do governo, para as quais as capacidades digitais são críticas, essas medidas deverão transformar o SERPRO em mero integrador de tecnologias de terceiros, até virar um departamento de compras qualquer, que mistura aquisição de papel higiênico com aquisição de software, lotado no rabogésimo lugar da estrutura de alguma secretaria de algum ministério.
Mais do que nunca, é necessário desprivatizar os serviços públicos baseados em TI, pela adoção de padrões abertos, com serviços predominantemente habilitados para a Internet, sob arquiteturas que separem a lógica de negócio dos sistemas de suporte. Ou seja, de modo que o governo se torne tecnologicamente agnóstico e livre da dependência de fornecedores e tecnologias proprietárias, capaz de integrar as funções apoiadas em sistemas de informação, e que seja capaz de incorporar princípios éticos na construção dos objetos tecnológicos, o que, infelizmente, está longe de acontecer. Isso sem falar do risco à proteção de dados que a privatização representa.
Embora esteja disseminada a ideia de que Guedes e sua turma não sejam capazes de promover a privatização até o final do atual mandato, o que tem produzido uma certa acomodação daqueles que são críticos da mesma, o fato é que ela já ocorre, lenta, mas inexoravelmente, em cada gesto de uma pretensa racionalização, amparada em consultorias que não têm a menor independência para discorrer sobre a modernização do setor público.