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Futebol, Racismo e Violência

Por Armando Rix

O gesto, a mão erigida aos altos sob os holofotes e os olhos maliciosos da torcida ucraniana. A bola que viaja, sobe infinita e se perde para nenhum lugar, nenhum lugar que resolva a impotência, a frustração, a raiva. Fanon bem que já dizia em 1961: “o homem colonizado é alguém permeado pela agressividade, por um ódio que o consome, todos os dias, sempre à procura, necessária, de algo, de alguém, alguma coisa para exprimir tudo aquilo que guarda”. Início confuso, não? Olhemos mais calmamente para identificarmos nossos personagens, nossa conjuntura e, principalmente, nossos inimigos.

O gesto que até hoje paira nos gramados de Kharkiv do clássico ucraniano entre Shakhtar Donetsk x Dynamo Kiev foi feito pelo jogador Taison em um suspiro de desabafo. A bola chutada em direção aos torcedores também partiu deste, indignado e estarrecido com os insultos que eram proferidos da arquibancada em direção a ele e outros brasileiros. As lágrimas que finalmente desceram deveriam ser toda forma de emoção, mas, certamente, eram expressão da constância dos atos ocorridos com jogadores negros nos diversos países do mundo europeu. A falta de impunidade, também contínua no mundo europeu, no caso de Taison, se transformou em um absurdo ainda maior quando o árbitro o expulsou de campo por toda reação perpetrada contra os xingamentos racistas da arquibancada. Não muito longe dali outro personagem também havia passado semelhante situação, mas nos campos italianos. Mário Balotelli, jogador do Brescia, repetiu a mesma ação do jogador brasileiro Taison e arremessou a bola contra os torcedores do Verona – recorrente equipe de casos extremos de fascismo e racismo. O jogador, que tantas vezes vestiu a camisa da seleção italiana, se viu mais uma vez nesta situação – já havia passado por isso na França como jogador do Nice – que nos últimos meses aumenta no Velho Continente. Com mais um ciclo de crise econômica capitalista ainda não recuperada, a Europa enfrenta mais uma vez a expressão obscura, mas nada surpreendente do fascismo, que se posiciona com a fundação de grupos, instituições e partidos para a consolidação do poder político – AFD, na Alemanha; Aurora Dourada, na Grécia; Lega Nord, na Itália, etc.
 
O Brasil também não escapa de todo esse padrão, pelo contrário, o País e a América Latina passam por uma intensa luta de classes – golpes na Bolívia, manifestações populares no Chile e Equador – que não deixam de reverberar nas diversas instâncias da sociedade brasileira. Obviamente, o esporte mais popular do mundo, tão junto aos humores da sociedade, também não deixou de produzir seus conflitos ou seus “Taisons” por aqui. No último duelo entre Cruzeiro e Atlético, por exemplo, um torcedor atleticano, em meio a uma discussão com o segurança Fábio Coutinho, o insultou de “macaco” e disse para este olhar a “cor de sua pele”. Nada surpreendente foi ver poucas ações tomadas, ainda mais da empresa Minas Arena, responsável pelo caso de Eros Dátilo – torcedor, negro, morto covardemente por seguranças do mesmo estádio Mineirão. A Minas Arena se pouco soltou alguma nota, não fazendo nada de mais concreto para a defesa de seu funcionário. A grande imprensa se indigna, faz reportagens, matérias jornalísticas com os envolvidos, lamenta, mais uma vez. O racismo é condenado, reiterado como crime hediondo, denunciado como o mais anacrônico sentimento do século XXI. Mas não é a normalidade deste século ainda haver tantas formas anacrônicas: imperialismo, exploração econômica, capitalismo? Obviamente, é necessário, é uma das etapas, nos indignarmos, sermos agressivos, chutarmos com violência para o além uma bola para arquibancada. Mas é apenas o primeiro passo, somente o primeiro, observou uma vez Frantz Fanon.

Quem é, por fim, Frantz Fanon e o que ele tem a dizer sobre nossos inimigos? Nascido em 1925, em Fort-de-France, na Martinica, Fanon se tornou um dos grandes teóricos do colonialismo capitalista perpetrado pela Europa no continente africano e nas ilhas caribenhas. Formado em psiquiatria, não somente empreendeu seus trabalhos na então colônia francesa Argélia, como também escreveu sobre a situação colonial do País enquanto lutava junto à guerrilha da FLN (Força de Libertação Nacional) durante a Guerra de Independência da Argélia – 1954-1962. Em sua breve vida atuante em tantas instâncias – faleceu de leucemia, em 1961 – o martinicano passou por inúmeros assuntos, mas o que nos interessa aqui é sua última obra escrita, já pouco antes da morte, cuja retórica afiada mais uma vez espanta e sensibiliza como de costume para aqueles leitores “fanonianos” – para os interessados em conhecer mais, leitura obrigatória de “Pele Negra, Máscaras Brancas”, de 1952. “Condenados da Terra”, de 1961, retorna, então, várias questões já colocadas pelo autor, mas agora em outro momento, pós-experiência junto às guerrilhas e concepções ainda mais reforçadas sobre o mundo colonial, o capitalismo, o racismo, a violência e a morte.

Nesse sentido, agora, sem mais delongas, amarremos tudo: A mão de Taison, a pele escura do segurança, a violência brutal de nossos dias. Fanon, talvez em um de seus capítulos mais lidos e conhecidos, “Da violência”, fala, claro, sobre seu mundo dos anos 50/60, mas sua mensagem reverbera até nossos dias, em cada Eros Dátilo que mais uma vez tomba. O filósofo nos diz sobre o imperialismo, a situação colonial, fundada em classe/raça, ideologicamente maniqueísta nas relações entre dois sujeitos. De um lado, a cidade rica, do branco, do colono, daquele que criou todo colonialismo por meio da violência. Do outro, aquele que foi subjugado, racial, econômico e culturalmente, mortificado por sua cor, manchado por sua raça: lembre-se de sua pele escura, disse o torcedor atleticano ao segurança. Um mundo cindido em dois, conectado somente por uma via: a violência. Por isso o colonizado tem que ser tão agressivo, vive seus dias sob todas as formas violentas possíveis criadas pela classe dominante – violência psicológica, emocional, cultura, policial. E esse sujeito, tomado pela agressividade, precisa se libertar, mesmo que seja um suspiro, um gesto, um chute, um choro. É, pois, necessária e inevitável, como mostra Fanon, essa primeira forma de reconhecimento, de onde vem a expropriação, as armas, o terror, o inimigo. É o primeiro, mas não o último passo, alerta o martinicano.

Fanon, assim, vislumbrou, melhor, identificou a chave para acabar com esse mundo apartado: construído radicalmente pela violência, só se pode findar eternamente por esta própria. Para o indivíduo explorado, colonizado, o que Frantz Fanon receita é direcionar toda essa violência guardada, internalizada não mais somente para alguém, para uma arquibancada, mas para todos os mecanismos, instituições, estruturas que fundam, estabelecem e consolidam o capitalismo imperialista e fascista da Argélia ou de nossos tempos. É parar somente de invejar o mundo dito civilizado, limpo, tocado por maravilhas do colono, e, consequentemente, querer somente ocupar o lugar deste que é somente edificado em razão da pobreza, da exploração. Para o colonizado, alerta o filósofo, a violência é para a morte das classes, das raças, de tudo aquilo que é fonte de medo, de terror e da miséria. Não há meio termos, nem conciliação, pois, se houver alguma, é a derrota certa do colonizado e a alegria infinita do colono.

Hoje, neste exato momento, na América Latina, nos variados países do grande continente africano, a mensagem de Frantz Fanon é crucial. O imperialismo estadunidense e dos principais países europeus retomam com mais força toda sua violência. Por meio das grandes empresas, dos grandes bancos mundiais, desestabilizam e financiam golpes, mortificam e destroem a cultura de nossos povos, cristalizam nossa existência em um mundo desnaturado, artificializado, maniqueísta do colonialismo. O futebol, em tudo isso, é só mais um espaço político atingido, seja pelos gritos e xingamentos da arquibancada, pela elitização que retira as classes dominadas dos estádios ou pelos processos e desejos de privatizações de lugares e organizações antes públicos – estádios, clubes-, mas que apontam para se tornar o mundo privado e intocável de uma só pessoa. O que quero, ao final, o que precisamos não é somente os gestos e as reações de Taison, os lamentos e indignações da imprensa e das instituições, mas uma força revolucionária e coletiva de encontro ao imperialismo, ao racismo e ao capitalismo. Não é utopia, pelo contrário, é a atenção ao método, a edificação de forças e a criação do objetivo comum das classes exploradas e colonizadas. Pois, como diz, Fanon, quando este indivíduo colonizado souber das condições reais e materiais da exploração que sofre e dos inimigos que possui, soltará uma gargalhada quando pelas palavras e olhos do colono estiver animalizado, racializado, mortificado. “Pois sabe que não é um animal. E justamente, no instante mesmo em que descobre sua humanidade, começa a polir as armas para fazê-la triunfar”.

 


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