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BALAS DE ESTALOS: CARNAVALIZAÇÃO NA CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS – Parte I

André Sarmento de Sousa


O carnaval, apesar de estar relacionado, à primeira vista, ao povo brasileiro, possui um caráter universal e não tem fronteiras espaciais, sociais ou culturais. Esta herança festiva foi trazida ao Brasil pelos portugueses, em 1641. O Entrudo, heranças dos folguedos europeus, é o precursor do Carnaval, tal qual o conhecemos. Ele se caracterizava por brincadeiras de rua em que os foliões arremessavam água, ovos e farinha nos transeuntes.

A celebração europeia, graças à dinâmica de antropofagia cultural, sofre um processo de abrasileiramento, originando assim a atual configuração do Carnaval, considerada uma das festas mais populares do País. No período de sua realização, os olhares dos brasileiros se voltam para os coloridos das ladeiras de Olinda, dos becos do Pelourinho e para os arcos da Lapa. No imaginário popular, por exemplo, o ano novo só começa em fevereiro, depois da quarta-feira de cinzas.

Esta celebração democrática, que nasce da rua, transgride e transforma. Foi uma conquista das camadas mais pobres da população brasileira que, a contragosto das elites, saíram às ruas com suas músicas para festejar, subvertendo a ordem, criando um mundo fora das hierarquias sociais.

Dos carnavais, dos malandros e heróis, dos becos sujos, da alma dos renegados etc., esta manifestação popular foi capaz de, com seu imenso cordão, destronar a aristocracia e seus salões perfumados, requintados da alma europeia, criando a partir da “carnavalização” um mundo às avessas. O filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e das artes, Mikhail Bakhtin, ao refletir sobre o contexto de François Rabelais (escritos do Renascimento), retoma as formas populares de comemoração que se caracterizavam como cômicas e, sobretudo, inversoras da ordem oficial com sátiras, paródias e alegorias.

Esta força avassaladora tomou conta da imprensa brasileira no final do século XIX. A polêmica sobre a proibição do Entrudo arrastou a intelectualidade para o mundo dos iletrados, dividindo os escritores brasileiros. De um lado, os defensores da alma libertária das ruas do Rio de Janeiro e, do outro, os entusiastas de um projeto civilizatório da elite brasileira.

Para entender “o carnaval das letras”, nos baseamos na discussão polêmica sobre a proibição do Entrudo, tema da crônica de 30 de janeiro de 1885, escrita por Machado de Assis, mas assinado por seu pseudônimo Lélio. Tal crônica foi publicada numa secção de folhetim intitulada “Balas de Estalos” (1958), do jornal Gazeta de Notícias, no ano de 1885.

Ao nos debruçarmos sobre tal polêmica, constatamos na crônica de Lélio (Machado de Assis) um posicionamento crítico acerca da repressão à manifestação popular.  Para tanto, o escritor recorre à ironia e circunscreve-se no universo dos adereços, das manifestações culturais via carnavalização literária.


O QUE É A CARNAVALIZAÇÃO

 

Mikhail Bakhtin é considerado um dos principais pensadores do século XX, um filósofo da linguagem, do discurso e da literatura. Em sua obra “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” discute a influência do carnaval na literatura do Renascimento. Bakhtin dá forma às ideias conceituais da carnavalização que, dentre outros elementos, consistem na apropriação dos escritores do Renascimento, das manifestações da cultura popular medieval caracterizada por sua natureza não oficial, configurando, segundo o teórico russo, um olhar crítico, moldado pela suspensão de todas as hierarquias, transformando o mundo real às avessas.

O carnaval é refletido como uma força cultural, subversiva e transformadora. Durante a celebração, o caráter cômico dos seus elementos essenciais como o riso, o deboche, a fantasia etc., eram vividos livremente nos locais públicos (ruas e praças), garantindo a liberdade de expressão que só pode existir na pluralidade. O poderoso sistema cômico de degradações, inversões e transvestimentos provoca mudanças na concepção de mundo. Ao despir-se do domínio oficial, o carnaval relativiza o regime hierárquico, instaura-se a liberdade e elimina-se a distância entre as pessoas, potencializando os desejos coletivos intrínsecos à existência humana.

A festa popular (cômica) se opõe às festas oficiais (sérias). Enquanto estas consagravam a estabilidade, a imutabilidade e permanência das regras que conduziam o mundo em camadas rígidas, o carnaval proclamava a suspensão de valores, normas, tabus religiosos, políticos e morais correntes.  Uma catarse coletiva que se contrapõe à vida alienante do sistema social.

Bakhtin  reconhece que a carnavalização, criada pela inversão provisória de todas as relações de poder (o niilismo das ruas), cria na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais. O carnaval da praça pública medieval opõe-se à cultura oficial, a partir do estabelecimento provisório de uma ordem da "não-ordem", onde se pode expressar sensações populares, libertando-os da concepção oficial.

No carnaval elaboram-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da moralidade. Logo, “as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades do poder”.  Com uma originalidade surpreendente, o carnaval transforma a linguagem. Assim a carnavalização abre o caminho para uma seriedade nova e lúcida, opondo-se a toda perpetuação e regulamentação, um “futuro ainda incompleto”. Para Bakhtin o elemento essencial da carnavalização é o grotesco.

Ao estudar o papel da estética do grotesco, Bakhtin afirma que a verdadeira essência do grotesco estaria associada à alegria das festas populares da Idade Média e do Renascimento.  O grotesco encontraria a sua mais legítima tradução na festa de carnaval dessas épocas, por sua natureza libertária, que proporcionaria uma suspensão temporária de regras, privilégios, hierarquias e tabus. Como na ornamêntica grotesca, constata-se nessas festas populares um processo de inversão da ordem oficial.

É importante observar, no que se refere ao texto literário, que a teoria bakhtiniana constrói conceitos que representam ruptura com o tradicionalismo. Assim, a cultura popular está inserida na cultura como uma manifestação viva da “memória criativa” que rompem com a lógica dominante que hierarquiza as expressões culturais.

Para Bakhtin “a linguagem literária é um sistema dinâmico e complexo de estilos de linguagem; o peso específico desses estilos e sua inter-relação no sistema de linguagem literária estão em mudanças permanentes”. Para analisar o discurso literário é preciso considerar as condições históricas de sua produção.
    

Se compreendermos que existem infinitas possibilidades de situações comunicativas, constataremos que existem também inúmeras possibilidades de gêneros. Esta é a base para a reconstrução e renovação dos gêneros do discurso. O gênero “crônica”, por exemplo, expressa uma cadeia complexa de elementos da comunicação cultural, que possibilitam o diálogo entre a literatura e o cotidiano, onde ambas as esferas se modificam e se complementam. Tal gênero do discurso é o resultado das relações dinâmicas entre escritor, público leitor e sociedade.


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