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Quando os palhaços da sociedade se insurgem contra o status quo

Um dos vilões mais icônicos dos quadrinhos e da cultura pop assumiu uma de suas versões mais violentas e polêmicas entre suas aparições em HQs, animações, TV e cinema.

Premiado com o Leão de Ouro, em Veneza, o filme Coringa, dirigido por Todd Phillips e interpretado pelo ator Joaquin Phoenix, pôs a nocaute os clichês do entretenimento lúdico e maniqueísta dos heróis da ficção e fantasia, onde o “bem” e o “mal” são devidamente caracterizados e separados um do outro.

Coringa trouxe à tona um acalorado debate sobre o impacto da representação da violência no comportamento humano, colocando em evidência, além da polêmica a respeito do controle da venda, posse e porte de armas nos Estados Unidos, a visão da saturação e revolta de uma sociedade injusta e cada vez mais explorada pelos poderosos.

O filme estreou sob acusações de incitar a violência, por isso, a polícia de diversos estados americanos teve de ficar de prontidão no dia da estreia, em alerta para eventuais tiroteios protagonizados por fãs mais entusiasmados e radicais do personagem em questão.

Segundo o pesquisador, estudioso de estética psicanálise e cultura de massa e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Verlaine Freitas, “toda obra de arte que tem algum impacto midiático carrega em si a possibilidade de despertar afetos que movem as pessoas numa determinada direção”.

Porém, esses diversos aspectos intrínsecos à trama devem ser avaliados e considerados.

O pesquisador aponta que “todo comentário sobre obras culturais tem a ver com uma determinada diretriz de ideias” e que “é evidente que as vozes partidárias da manutenção do poder econômico nas mãos de poucos vão questionar a legitimidade política desse filme”.

Afinal, a trama retrata uma onda de reação popular contra o aniquilamento de suas vidas, vozes, direitos, bens, enfim, de sua dignidade humana. Essas pessoas pobres do filme são literalmente chamadas de “palhaços” por um personagem que representa a “elite” dominante de Gotham City, o magnata Thomas Wayne (pai do jovem Bruce Wayne que, num futuro próximo, encarnará o justiceiro Batman).
Se, no sentido contrário, o filme seguisse um roteiro defendendo a normalidade do status quo estabelecido, esse efeito político seria bem diferente.

O diretor Todd Phillips apresenta o Coringa antes de ser Coringa. Nessa história, ele é Arthur Fleck, um jovem pobre e desiludido, com distúrbios mentais, que sonha em ser comediante, mas que resume sua cruel realidade em sobreviver fazendo bicos como um palhaço anônimo e sem talento.

Visto como um esquisito por conhecidos e desconhecidos, Arthur Fleck sofre uma rotina de humilhações, agressões, insultos e fracassos, até que, num determinado momento, ele começa a reagir de forma violenta contra aqueles que o atacam.

Ainda como um cidadão anônimo, ele vê seus atos de violência serem celebrados por parte da população de Gotham City, principalmente porque suas primeiras vítimas foram executivos do mercado financeiro, o que é interpretado e ganha força na ficção como “um ataque direto ao sistema”.

No filme, podemos ver um Coringa pouco motivado a praticar atos identificados com aquilo que seria uma revolta popular contra ricos. O personagem não está inserido num universo popular. Tudo acontece à revelia de sua ação.

Ele sofre com problemas graves de saúde mental e vários traumas, que fazem com que ele seja simplesmente ignorado pela sociedade. Ele não participa do levante popular. Os atos de violência por ele praticados são mostrados como reações individuais às agressões injustificadas que sofre. Ele não tem nenhuma atitude perversa premeditada de usar o crime e o mal como algo que lhe dê prazer ou de realçar suas ações como anti-herói. Antes da cena final, ele mal entende o que está lhe acontecendo.

 

Provocando reações ambíguas

 

O longo aplauso ao Coringa na sessão de gala, em Veneza, e a boa recepção da crítica apontaram que o longa-metragem seria um forte candidato ao Oscar. Porém, depois de sua estreia, as opiniões sobre o filme têm se alternado entre os que o aprovam e os que o contestam.

A presidente do júri do Festival de Veneza, a cineasta argentina Lucrecia Martel, elogiou a capacidade da obra de apresentar “uma reflexão sobre os anti-heróis, mostrando que talvez o inimigo não seja o homem, mas o sistema”.

Xan Brooks, do diário britânico The Guardian, definiu Coringa como “um filme gloriosamente ousado e explosivo, um conto quase tão distorcido quanto o homem em seu centro, cheio de ideias e voltado para a anarquia”.

A publicação norte-americana Variety comentou que “uma rebelião contra a elite dominante – que é o que a ação de Arthur passa a simbolizar – é mais plausível agora do que há uma década”.
Já A. O. Scott, do New York Times, fez críticas negativas: “Para valer a pena discutir, um filme deve, em primeiro lugar, ser interessante. Deve ter, se não um ponto de vista coerente, ao menos um conjunto de temas elaborados e instigantes, algum tipo de contato imaginativo com o mundo. Coringa é um exercício vazio e nebuloso de segunda mão e filosofia de segunda classe”.

No Brasil, o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Filipe Martins, usou seu Twitter para atacar ideologicamente os opositores do desgoverno instaurado: “uma demonstração do que a anomia social e o ressentimento esquerdista podem fazer com uma mente perturbada”.

Se as opiniões sobre o Coringa se dividem entre os que o consideram uma brilhante realização e os que o desprezam intensamente, pelo menos entre o público o filme tem sido bem-aceito. A película quebrou recordes de bilheteria no mês de outubro, com uma performance de público muito bem-sucedida, não apenas nos Estados Unidos, onde lidera a lista há várias semanas, como no Brasil (fez 1,7 milhão de espectadores em sua semana de estreia).

Outros filmes violentos, como os do diretor Quentin Tarantino, ou mesmo os de personagens como Rambo, típico herói do cinema norte-americano, não costumam levantar esse tipo de debate ou polêmica sobre a violência.

Entretanto, quando a violência é de cunho político, de contestação contra o sistema, de revolta das massas, tal obra se torna um grande perigo para o establishment, que passa a fazer de tudo para impor suas críticas e opiniões no intuito de garantir o ponto de vista favorável à classe dominante.

Faz-se necessário assistir ao filme atentos a essas observações e detalhes.


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