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“O que está acontecendo hoje sempre aconteceu: eles sempre querendo colonizar nosso povo”

O Jornal Gazeta Operária (JGO) entrevistou o mestre de capoeira, conhecido como Mestre Primo, sobre o 5° Encontro Nacional de Capoeira Angola, que ocorreu no último mês de setembro, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

JGO: Qual a origem da capoeira angola? Podemos considerar a capoeira como um elemento de resistência do povo negro?

Mestre Primo: Sim, a capoeira veio da África, foram os africanos que trouxeram. Mestre Pastinha fala assim, que ele aprendeu direto com o africano e, por isso, a resistência. Quando a gente entende que ela veio da África, e já é uma lógica diferente aqui do ocidente. Para garantirmos toda essa africanidade da capoeira, temos que nos organizar e nos conectar com toda essa ancestralidade deixada pelos africanos. Entender isso é importante, porque aqui, no século XX, se estruturou esse nome “Capoeira” no ocidente, mas ele descontextualizou toda essa questão da África. Quando se estrutura essa ideia de capoeira, o que segue é essa ideia junto com capital e isso trouxe um prejuízo muito grande. Muito do nosso povo achou que iria acessar a nossa história original através dessa coisa superficial que foi criada aqui no ocidente, em 1930, que o Mestre Bimba descriminaliza. Todo esse conhecimento, todo esse conteúdo da origem da luta que fez indicativo para essa questão da capoeira, quando se tira o processo histórico, tira também a questão da Resistência e todos os elementos que circulam em torno do processo da história. Quando voltamos no mestre Pastinha e nos conectamos com todo esse processo que ele deixou de movimento, de técnica do africano, entendemos essa lógica do ocidente, do Capital, que desconstrói, que vem o processo da segregação.
Para resistir neste lugar da capoeira e entender toda essa bagagem que o africano trouxe e que foi negado no ocidente tem que estudar bastante. Essa bagagem não se limita apenas a isso, mas tem também a questão da engenharia, agronomia, a forma de lidar com os minerais, isso tudo veio da África. A fabricação de sinos e tudo, mas o ocidente aqui negou todo esse processo. Quando a gente faz a conexão dessa luta com a questão da África, que é uma África que a gente não conhece, quando nós desenvolvemos essa técnica que os africanos deixaram, nosso corpo acaba se encontrando com a história. O corpo, quando encontra a história, ele se liberta dessa ideologia escravagista do sistema.

JGO: Atualmente, qual é a importância cultural da capoeira para o povo negro do Brasil?

Mestre Primo: É uma importância muito grande, só que o povo negro, por conta dessa história mal contada desde o século 20, ainda não consegue conectar com a história real. Então, às vezes, nós não temos nosso povo dentro desse lugar de estudo e de busca da origem. Nosso povo foi seduzido por essa ideologia escravista, então muitos não conseguem entender a grandeza que é todo esse processo, infelizmente. Para a gente, é uma tristeza muito grande ver isso, por exemplo, nas últimas eleições. Você viu muito o povo negro votando nessa sabe aberração que está lá, mas é porque não tem noção da história. O negro perdeu, foi desconectado de propósito para ele não entender a historia real que vai revolucionar, ressignificar o pensamento e o comportamento dentro do sistema.

JGO: A capoeira era tida como uma prática violenta e subversiva por ser “coisa de preto”, chegando, inclusive a ser formalmente proibida. Atualmente, ela é considerada um patrimônio nacional, mas ainda há preconceito e discriminação contra a capoeira e seus praticantes?

Mestre Primo: Sim, claro! Essa primeira coisa que você falou, que a capoeira foi vista como uma coisa violenta, isso eles falaram para o nosso povo lá no século XIX. Falaram que essa luta não poderia vir. Mas ela é uma luta de verdade, que tem ataque, defesa, história, ideologia, técnica, ciência etc. Essa luta e esse conhecimento, tudo que veio de lá, foi negado pelo sistema e colocado como uma coisa violenta. Se “coisificou” tudo que o negro trouxe, tudo que o africano escravizado trouxe e virou coisa ruim. Criou-se outra mentalidade para poder higienizar todo o conhecimento que o negro trouxe. Criou-se outro processo em que o nosso povo, para garantir a sobrevivência, teve que se enquadrar dentro desse processo e esquecer cada vez mais a sua história.

JGO: No mês de setembro foi realizado, em Belo Horizonte, o 5° Encontro Nacional de Capoeira Angola, em homenagem aos 131 anos do Mestre Pastinha. Como foi o evento e qual a sua importância?

Mestre Primo: A importância é que nesse evento falamos um pouco desses valores negados pelo sistema. Do valor da engenharia, a contribuição do negro na área do mineral, do ouro, a contribuição do negro na fabricação de sino, na questão da matemática e da luta. Nós fizemos uma mesa que chamava a “descolonização do sistema”, para desconstruir essa colonização que fizeram na cabeça do nosso povo, desconstruindo toda riqueza de conhecimento que nosso povo trouxe. No encontro, tivemos uma mesa de história que fez essas discussões, que para nós é muito caro e para o povo debater e a gente discutir e aprofundar mais nessa linha do conhecimento, para ressignificar nosso olhar e o nosso pensamento. Tivemos outra mesa de políticas públicas, onde discutimos políticas para ajudar a preservar todo esse processo e criar territórios de proteção para que essa cultura continue a perpetuar por mais 100 anos. E, para isso, temos que desconstruir essa ideologia escravagista, achar outra lógica, essa outra lógica que está no nosso corpo e que foi negada pelo sistema. Nesse sentido, foi interessante essas duas mesas e a oficina que tivemos com todos os mestres que estavam lá. Os alunos puderem fazer as oficinas com os mestres e fazer uma avaliação disso, o que foi importante. Uma coisa que julgamos importante é que esse Encontro foi na linha do acolhimento, ninguém pagou para poder entrar no evento. Nós usamos verba pública para poder facilitar esse lugar do acolhimento do nosso povo, instruir o nosso povo dentro dessa linha do conhecimento para conseguirmos reagir a toda essa atrocidade, essa anormalidade que está colocada nesse e em outros momentos que a gente acha, pensa e enxerga a leitura. Na verdade, o que está acontecendo hoje sempre aconteceu: eles sempre querendo colonizar nosso povo, sempre querendo dominar e domesticar e nós, muitas vezes, caímos nessas armadilhas do sistema. A gente só não cai quando acessamos o conhecimento, que desconstrói essa lógica e aponta para outra, que inclui.

JGO: O Brasil vive um momento de intensos retrocessos, com o aumento visível do extermínio do povo preto e pobre. Como é praticar e ser mestre de capoeira nesses tempos?

Mestre Primo: Ele tem que estar bem, o mestre de capoeira tem que estar bem atento ao seu papel social e político dentro desse processo para ele poder contribuir com isso. Eu acho que acessar uma linha que acolhe o povo e instruir o indivíduo, um por um, nesse combate, nessa guerra ideológica que nós estamos. Temos uma ideologia que foi negada que tem que ser retomada para nós acessarmos a busca da liberdade, é isso que temos que tentar passar para nosso povo. O interessante é que essa busca pela liberdade, ela não vai se dar só com uma pessoa, ela vai dar um coletivo. Nosso papel, e quando eu falo nosso papel social, tem que ver com nosso papel político, de trabalhar num lugar de acolhimento onde possamos acolher ao máximo o nosso povo e instrui-lo nessa linha do conhecimento, para poder ter uma reação diante dessa atrocidade que nós estamos vivendo hoje. Está tudo nessa linha do conhecimento que foi negada por esse sistema escravocrata, machista, egocêntrico e tal. Para desconstruir isso, só o conhecimento que os africanos deixaram. Temos que voltar a entender todo esse processo.


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