• Entrar
logo

Maman Marie Nzoli e a determinação em salvar vidas

Syauswa Nzoli Marie nasceu em 25 de dezembro de 1963, na cidade de Butembo, na província de Kivu Norte, na República Democrática do Congo. Filha de Simon Kasereka e Muhasa Speciose, Maman Marie, como é chamada, teve uma infância muito complicada, em uma família onde é a quarta filha, sendo seu pai professor e sua mãe agricultora. Durante o ensino primário e secundário foi sua mãe quem pagou seus estudos com o dinheiro que era destinado à sobrevivência familiar. Ainda no ensino secundário, começou a fazer Beignets (bolas de massa fritas) para ganhar a vida. Além disso, vendia amendoim para outras crianças e escolhia grãos de café durante as férias para comprar cadernos e material escolar.

Aos 20 anos de idade, quando terminou seus estudos, foi para Masareka, morar com cerca de 18 mulheres do campo. Ao refletirem sobre os problemas enfrentados, concluíram que eram exatamente os mesmos: falta de campos para cultivar e, consequentemente, de “ganhar a vida”. Afinal de contas, a maior parte das terras produtivas congolesa estavam nas mãos dos grandes conglomerados internacionais, situação que permanece inalterada até hoje.

Contudo, essa avaliação conjunta foi importante para que elas percebessem que, ao trabalharem juntas, poderiam descobrir formas de aumentar e facilitar a produção nas terras que ainda lhes restavam. Foi daí que surgiu a ideia de criar uma organização para se ajudarem mutuamente, a qual deram o nome de ONG (Organização Não-Governamental) COPERMA, que funcionava sob a liderança de Maman Marie.

 

O contexto congolês

 

Para entender a atuação da ONG COPERMA, antes é necessário entender o contexto congolês. Na década de 1940, o então líder do movimento de independência, Patrice Lumumba, deu início a um movimento pela libertação de Congo, até então “colônia belga”. Em 1960, várias entidades nacionais se reuniram na Organização das Nações Unidas (ONU) para pressionar Bélgica a declarar a liberdade de Congo. A independência acabou ocorreu no dia 30 de junho do mesmo ano. Após a independência, foi criada a República Democrática do Congo (RDC) e Lumumba foi eleito primeiro-ministro congolense.

Com a independência surgiram vários problemas políticos, inclusive, já no primeiro mês em que Lumumba tomou posse, houve uma rebelião contrária ao seu governo. Isso ocorreu após Lumumba declarar que não acreditava que somente a independência política fosse capaz de livrar o Congo da dependência colonial, mas que a libertação só seria possível no momento em que o Congo deixasse de ser dependente economicamente da Europa.

Após tal declaração, todos os exploradores ocidentais ficaram em alerta, dentre os quais as várias corporações inglesas e belgas que investiram na exploração do ouro, cobre, cobalto, diamante e outros minérios no território congolês. Temiam pela nacionalização das empresas e também pela aproximação do governo do Congo com a União Soviética.

Para defender os interesses do imperialismo, em 1961, Lumumba foi sequestrado e morto em um golpe de Estado apoiado pelos EUA. Esse golpe foi personificado pelo antigo Oficial da Força Pública Colonial, Joseph Désiré Mobutu. O encarregado dos EUA governou o Congo ditatorialmente durante 32 anos, no período de 1965 a 1997. Para compreender os conflitos atuais no Congo, entender o governo de Mobutu é essencial, pois foi sob o seu comando que a organização estatal foi utilizada para beneficiar o estrangeiro, entregando os meios de produção à propriedade privada estrangeira.

Uma série de confrontos contra Mobutu, na Província de Kivu Norte, deram origem a duas guerras civis. A primeira, no período de 1996/1997, em que os rebeldes tomaram Kinshasa, capital de Congo, e fizeram com que o presidente fosse enviado ao exílio. No dia 29, Laurent Kabila se declarou presidente da República Democrática do Congo.

A segunda guerra, que durou cinco anos, entre 1998 a 2003, deixou um rastro de 4 milhões de mortes, sendo considerado como o conflito que mais matou desde a 2° Guerra Mundial. Além das mortes, cerca de 3,4 milhões de pessoas ficaram refugiadas.

É preciso deixar claro que o real motivo das guerras no Congo foi o imperialismo. A colonização em África não levou em consideração os antigos territórios dos grupos étnicos. Dessa forma, por vezes, colocou em uma mesma região grupos étnicos historicamente rivais. No pós-independência, isso gerou inúmeras guerras civis. No Congo, um país extenso, que tem o mesmo tamanho da Europa Ocidental, mais de 200 grupos étnicos disputavam a riquezas dos recursos naturais.

Oficialmente, a segunda guerra no Congo terminou em 2003, mais ainda assim continua havendo conflitos. Hoje, o País vive umas das piores crises humanitárias do mundo, advindos da exploração imperialista. A taxa de mortalidade infantil corresponde a 115 óbitos a cada 100.000 nascidos, sendo umas das mais altas do mundo. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de apenas 0,239, sendo a segunda pior média mundial. Já o analfabetismo atinge 32% dos habitantes, sendo a taxa de subnutrida equivalente a 76% da população. A maioria dos habitantes vivem com menos U$$ 1 por dia. Além disso, o Congo também é considerado a capital mundial do estupro.

Apesar dos dados serem alarmantes, o Congo não ocupa lugar nos noticiários e não conta com a “ajuda” internacional, pois ao contrário dos países do Oriente Médio, onde também há conflitos, o Congo já não representa um cruzamento de proveito geopolíticos, ou seja, não é do interesse dos países capitalista intervir na recuperação da RDC.

Mesmo com sua imensa riqueza e recursos naturais, o Congo ainda possui baixo nível de infraestruturas e a grande maioria da população vive na miséria.

 

Atuação da ONG COPERMA

 

Foi nesse cenário onde viveu e cresceu Maman Marie. Com dito, a República Democrática do Congo é considerada a capital mundial do estupro, muito em decorrência das guerras civis, mas que se perpetuaram até os dias atuais. Um estudo científico, publicado em 2011, relatou que 48 mulheres são violentadas a cada hora no Congo, sendo mais de 400.000 casos por ano.

Dados de 2010 mostram que 22% dos homens e 30% das mulheres do Congo foram vítimas de violência sexual. Na verdade, os abusos sexuais são usados como “arma de guerra”, pois pelas regras de convivência tradicionais do local, o estupro rompe com a harmonia e o conjunto social de uma comunidade. A mulher estuprada perde seu valor, sendo culpada e abandonada pela sociedade. Os homens abusados, por sua vez, temem por sua reputação, fazendo com que não denunciem por medo e vergonha.

Com isso, a ONG COPERMA, liderada por Maman Marie, que havia sido criada inicialmente para ajudar a resolver o problema de cultivo como forma de ganhar a vida, começou também a ajudar as vítimas da guerra e dos estupros, atendendo não só mulheres, mas também homens e crianças.

O trabalho da ONG COPERMA existe há mais de vinte anos, estabelecendo centros comunitários em áreas de conflito, visando, especificamente, os indivíduos mais carentes e os mais necessitados (sobreviventes de estupro, soldados-crianças desmobilizados e órfãos). Utilizando estes centros pré-estabelecidos em dez aldeias diferentes, o COPERMA tenta disseminar informações contra o estupro e prestar serviços básicos.

Dois psicólogos congoleses treinam líderes comunitárias eleitas para atuar como apoio urgente e disponível para novos e antigos casos de violência sexual. Essas “ouvintes” são treinadas em escuta ativa, sensibilizadas da violência que sofrem as mulheres e da estigmatização que passaram após sofrer os estupro, de forma a receber e ouvir eficazmente os sobreviventes e acompanha-los aos hospitais. Os sistemas médicos no Congo são extremamente básicos, por isso os pacientes geralmente não são informados sobre a profilaxia pós-exposição ao abuso sexual, nem sobre a pílula do dia seguinte.

As ouvintes também são treinadas para reconhecer sintomas de estresse pós-traumático, síndrome do traumatismo por estupro e depressão. Nesses casos mais graves, a orientação é alertar os psicólogos da COPERMA para que métodos mais intensivos de apoio e tratamento possam ser iniciados. O treinamento e acompanhamento das ouvintes da comunidade ocorrem bimestralmente.

Enquanto os ouvintes da comunidade são o aspecto principal e mais eficaz do programa, dois psicólogos profissionais do COPERMA também realizam aconselhamento semanal em grupo e sessões individuais. Como os papéis comunitários e sociais são componentes vitais da saúde mental congolesa, trabalhar em grupos diminui o isolamento dos sobreviventes e fortalece seus papéis percebidos pela comunidade. Quando os sobreviventes apresentam traumatização avançada, é realizada a retirada completa das atividades diárias da comunidade e os psicólogos da COPERMA fazem aconselhamento individual.

O aspecto final do projeto é o treinamento vocacional – costura, fabricação de sabão e panificação – que promove o sobrevivente ainda mais dentro da comunidade ao atribuir-lhe uma profissão. Ter a capacidade de apoiar a si mesmo e aos outros da família é vital para a aceitação da comunidade e, portanto, para a qualidade de vida e a saúde mental dos sobreviventes. Os resultados são maior estabilidade mental, emocional e econômica para os sobreviventes de violência e reintegração efetiva nas comunidades. Outras implicações são o aumento da sensibilização dentro das comunidades para diminuir a violência sexual entre os homens locais e aumentar as respostas positivas dos sobreviventes recentes de estupro.

Mesmo com esse intenso trabalho, Maman Marie passou por várias experiências traumáticas, sendo uma das mais triste um ocorrido em 2005, quando 18 crianças morreram em um dos centros COPERMA. Durante um combate por forças governamentais contra grupos chamados “rebeldes”, essas crianças ficaram quatro dias sem se alimentar, pois não podiam sair durante o confronto. Acabaram morrendo de fome e desidratação.

Apesar das dificuldades e adversidades, Maman Marie e a sua conseguem fazer um trabalho essencial que, além de salvar vidas, ainda procura dar apoio físico e mental. Reintegrando os sobreviventes à sociedade com apoio psicossocial, eles também são amparados com conhecimento, uma vez que são oferecidos cursos que podem ajuda-los economicamente. Trata-se de um exemplo de garra e perseverança, pois, mesmo com todas as dificuldades, ainda conseguem fazem um trabalho que deixa muitos países de primeiro mundo “no chinelo”. Na verdade, mesmo tendo criado esses conflitos, não apenas no Congo, mas em vários países da África, o imperialismo tem por princípio não se importar com a condição humana. Apenas o lucro interessa, mesmo que isso significa a morte, escravização e violência de milhões de pessoas.

Notícias relacionandas


Topo