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A verdadeira face dos Estados Unidos

Por Vladimir Serge

É um lugar-comum dos invejosos e gananciosos pequeno-burgueses brasileiros apontar para os Estados Unidos como uma inspiração. “Vejam como lá as coisas funcionam!”, seguido de um tradicional “lá é primeiro mundo; não tem essa burocracia toda, esse monte de imposto que a gente paga aqui no Brasil!”. Movidos por um sonho de um mundo sem leis trabalhistas, onde o único direito é o direito de propriedade, esses “empreendedores” lambem os lábios sonhando com um “grande líder” que vai acabar com toda essa “bobagem”. É desnecessário dizer que essas pessoas votarão no candidato da extrema direita.

Mas os Estados Unidos são mesmo essa terra prometida com a qual sonham esses fascistas neoliberais? E o que é de fato essa terra maldita, esse império vergonhoso que ideólogos e “economistas” tanto apontam como exemplo de sucesso e de inspiração?

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A “terra da liberdade”, historicamente, foi erigida sobre a escravidão: “todos os homens são iguais perante a lei”, brada a tão exaltada constituição americana, exceto negros escravizados que, para efeitos de censo – para contabilizar quantos deputados um Estado deve ter no congresso – valia exatamente “três quintos” de um ser humano. Que ideal iluminado, não é mesmo? O “direito à vida, à propriedade e à busca da felicidade” valia apenas para o estrato muito restrito da população que redigiu a constituição: grandes donos de terra, quase aristocráticos ou feudais, senhores de grandes quantidades de escravizados. De que vale o “direito à vida” e “à propriedade” se o indivíduo nada possui e tem de vender sua força de trabalho em condições miseráveis no norte capitalista, ou então não é nem mesmo dono de sua vida, no caso dos escravizados do sul? Belas palavras, brutal realidade.

Que bradem então nossos ideólogos brasileiros, clamando que “naquela época as coisas eram diferentes, e além do mais nós aqui no Brasil só fomos abolir a escravidão em 1888, enquanto eles aboliram a deles em 1863!” De fato, nosso caro ideólogo cita fatos corretos – mas devemos olhar isso de um outro ângulo: que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravidão é uma eterna mácula, uma vergonhosa mancha terrível na história do nosso país, que jamais será apagada. Mas que os americanos tenham abolido a escravidão no país apenas vinte e cinco anos antes não é motivo algum para louvor; menos ainda que centenas de milhares de jovens trabalhadores e escravizados tenham sido marchados para mortes terríveis por generais “defendendo a sua honra”, como querem os bajuladores da guerra e da matança.

Quem pagou o preço da escravidão foram os pobres; os ricos aristocratas do sul continuaram em seu lugar, ainda que talvez tenham perdido sua supremacia econômica para os novos burgueses do norte.

“Pois bem”, bradará nosso ideólogo iludido, “pode até ser, mas hoje a nação mais livre do planeta são os Estados Unidos da América, onde o Estado não interfere na economia e apenas ajuíza as disputas inevitáveis, mas de maneira imparcial e correta”. Que belo sonho, esse, do nosso ideólogo! Mais “livre do mundo”, ele diz! O que é essa liberdade que ele brada? Nem mesmo o que ele acredita que seja! Os EUA são uma das nações mais protecionistas do planeta, onde o governo subsidia de forma obscena a produção agrícola de modo a baratear a produção de commodities como o milho e a soja de tal forma que o resto do planeta não pode competir. Por que os pequenos produtores agrícolas mexicanos estão todos falidos? Oras, não porque são ruins e “ineficientes”, como quer nosso ideólogo, mas porque, evidentemente, o governo mexicano não tem o mesmo tipo de recurso para gastar de forma obscena! Como competir com um produto que custa um terço do preço, já que os outros dois terços foram pagos pelo cidadão norte-americano?

E isso é pouco. O exército trilhonário americano não se sustenta de forma mágica; o cidadão norte-americano paga a conta. Imagino que muitos americanos ficariam felizes se não tivessem que sustentar o maior exército do planeta, obscenamente caro e quase incapaz de ganhar guerras contra países mal-armados e economicamente atrasados de terceiro mundo (perderam a guerra do Vietnã em 70; precisaram de duas guerras para retirar Saddam Hussein do poder no Iraque; estão há vinte anos no Afeganistão e foram incapazes de vencer o Talibã, um exército tribal que se sustenta por meio da venda de ópio e que mal tem armamentos, quanto mais os sofisticados mísseis e caças norte-americanos!). “Mas esse é infelizmente o alto preço que temos de pagar pela democracia…”, nosso ideólogo dirá, pronto para justificar qualquer coisa em nome dessa suposta “democracia”. Democracia pra quem? Não foi eleito democraticamente Mohammad Mossadegh, no Irã, em 51? Patrice Lumumba, no Congo, em 60? João Goulart, no Brasil, em 60? Salvador Allende, no Chile, em 70? Grande “democracia” que os norte-americanos defendem!

Não, a verdade é que o governo dos Estados Unidos não está interessado naquilo que nosso ideólogo acredita. A verdadeira face dos norte-americanos é a brutalidade do capital sem lei; o único direito é o direito da propriedade, o único dever é lucrar a qualquer custo. Não sejamos enganados por essas palavras que por vezes soam como doce mel aos nossos ouvidos, mas que na verdade são um veneno traiçoeiro que nos cega e ensurdece, nos torna incapazes de perceber a verdade nua e crua.

E, por fim, nosso ideólogo dirá, já furioso e cheio de escárnio, “pode até ser tudo isso, mas os Estados Unidos são a nação mais rica e poderosa do planeta. Se quisermos sermos fortes, que os imitemos!”. Nação mais rica? Talvez nação com mais ricos. O povo norte-americano não mais colhe as benesses do império tal como possamos imaginar. Os salários estão, para efeito prático, congelados desde 1970, enquanto que a produção efetiva mais que dobrou no mesmo período. Os jovens iludidos que morrem nas guerras sem fim são os jovens trabalhadores, são os negros, são os excluídos e oprimidos. O custo do atendimento médico é tão obsceno que leva até mesmo famílias de classe média à falência. Os jovens universitários têm de se endividar ao ponto da escravidão para conseguirem se formar. A taxa de suicídio é quatro vezes a taxa de homicídio. Frequentemente jovens sofrendo nesse sistema infernal descontam sua fúria nos seus colegas de escola, mutilando e chacinando em massa outros miseráveis inocentes, de forma sádica e trágica.

É isso que nós realmente queremos? Nosso ideólogo certamente dirá que sim. Tudo em nome do aumento de produção. Mas penso que esse destino é um inferno na terra. Se vamos sonhar com algo, que sonhemos com uma revolução dos oprimidos, tanto lá, no seio do império, quanto aqui, dos subjugados. Mas jamais aceitemos essas palavras vazias dos ideólogos, que tanto tentam nos convencer de que o inferno em que vivemos é o melhor dos mundos.


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